quarta-feira, 9 de maio de 2012

Abandono

   Na primeira noite, ela sentiu o frio do aço afiado contra sua garganta, enquanto os dois homens sujos arfavam e babavam por sobre o seu corpo. Ela se sentia violada, enojada, e tão logo acabaram, cuspiram sobre seu corpo caído por entre as folhas e partiram em gargalhadas.
   Ela juntou os farrapos e se encolheu de encontro a uma árvore, as folhas secas sob seus pés descalços, e descobriu que não tinha mais lágrimas pra derramar. Sentia o rosto queimando, de onde o murro a acertara. Provavelmente ficaria uma marca, mas ela não tinha que se preocupar com isso. Não tinha ninguém que olhasse por ela, não tinha quem se preocupasse com ela.
   Num esforço sobre-humano ela se ergueu, abraçou a grande árvore naquela noite quase sem estrelas, e um pé depois do outro começou a subir, devagar. Ela procurou abrigo entre os galhos mais altos que conseguia alcançar. Alguns pássaros adormecidos se assustaram, mas ela os tranquilizou com o olhar, aninhou-se num nó dos galhos e adormeceu, pendurada, protegida pelas folhas.

   O dia seguinte passou muito rápido, ela tinha aprendido como catar os restos das lixeiras grandes, perto do parque das crianças, antes que os outros habitantes do parque viessem. Desde que ela não fosse vista, estava tudo bem; nenhuma criança ia gritar, nenhuma babá ia atirar coisas contra ela.
   Nas tardes de sol ela costumava olhar os jornais velhos, esquecido sobre os bancos de madeira. Ela não sabia ler, nem reconhecer as letras. Não entendia nada sobre os números da bolsa de valores que estampavam as manchetes. Ela olhava as fotos mais diversas. Algumas eram coloridas. Mostravam pessoas sorrindo, algumas pessoas tristes. Havia também quadrinhos, que ela não entendia, mas via desenhos; e às vezes até tentava reproduzí-los na caixa de areia.
   Quando não havia sol, e o parque estava deserto, ela molhava os pés no córrego perto dos brinquedos, e sentava devagar nos balanços e ficava se sacudindo. Às vezes esticava a mão bem alto como se pudesse alcançar o céu, como se aquelas nuvens lá longe pudessem vir buscá-la.
   Mas quando começava a anoitecer, ela se empoleirava de novo, os olhos brilhando na escuridão verde das folhas das árvores.

   Quando chovia, ela coletava as penas caídas dos pássaros e enchia seus bolsos surrados. Havia penas de todas as cores, e era como se cada uma tivesse uma história, cada uma delas era um tesouro secreto que não fazia sentido pra mais ninguém, mas enquanto estivessem em seus bolsos, ela se sentia rica, se sentia feliz.

   Era uma tarde de domingo, bem cinzenta por sinal, e ela estava sentada num banco, olhando suas penas recém adquiridas, quando um outro morador do parque sentou perto dela. Ela se encolheu por instinto, preparada pra correr. Ele não fez nada senão colocar no banco um punhado de penas caídas, e sorriu, com uma boca cheia de pedaços podres de dentes, restos de pão no emaranhado de sua barba.
   Ela sorriu de volta, e devagar estendeu a mão e pegou as penas. Colocou-as todas no bolso e saiu correndo. Isso se tornou constante. Toda semana o velho sem dentes deixava um punhado de penas sobre o banco, mesmo que ela não estivesse lá. Ela passou a juntar alguns restos de comida pra ele, deixava depois de coletar as penas.

   O tempo passou devagar, veio o Outono e o Inverno, com as árvores quase secas. Eles se viam com menos frequência. Um belo dia sem nuvens, ela o estava esperando com alguns restos limpos de sanduíches. Parecia que a criança os tinha jogado fora com a embalagem. Ela sorriu com aqueles olhos vagos e inexpressivos. Já haviam perdido o brilho.
  Ele finalmente juntou coragem e disse um "Obrigado por dividir sua comida", com aquele sorriso desdentado e fétido. Ela estava inocentemente balançando os pés descalços.

"Você não deveria ficar sozinha aqui no parque, é perigoso"
Ela deu de ombros
"Você tem algum problema? Não sabe falar"
Ela se levantou e foi até o balanço, e ficou a balançar. Ele se aproximou novamente.
"Nem sempre eu fui assim. Eu tinha um emprego, tinha minha esposa e filho, e ela me abandonou por outro homem. Eu comecei a beber, perdi o que tinha, e sei que nunca mais vou ter alguma coisa na vida de novo. Qual é a sua história?"

Ela desceu do balanço e ficou de frente pra ele, o sol já estava se pondo atrás dela, com um brilho alaranjado. Ela abriu a boca num fio de voz. Era bem baixo, tímido, mas ao mesmo tempo inesquecível.

"Eu sempre estive aqui. Sempre estive esperando por alguém que me buscasse, alguém que me mostrasse que as pessoas valem à pena, e a única coisa que eu recebi foram os restos, os socos e pisões das pessoas. Recebi o cuspe delas no rosto, os gritos e as coisas que me atiravam. Recebi a violência delas e tive que aprender a conviver. Quando eu vim pra cá, eu achei que era capaz de fazer a diferença. Queria fazer algo importante, queria fazer algo melhor. Mas infelizmente, acho que vocês não estavam prontos pra isso"
Ele estava assustado. Achou que ela tinha algum problema mental. Pobrezinha. Tão bonita e louca.
"Não precisa entender. A maior parte das pessoas nunca entendeu. Eu sou um pequeno milagre, assim, do jeito que sou. Um milagre que nunca teve a chance de acontecer, e agora que o inverno chegou e meu tempo acabou, eu vou embora, vou voltar pro lugar de onde eu vim, vou voltar pra onde os dias são tranquilos e cheios de sorrisos sinceros. Obrigado por ter falado comigo, por ter compartilhado essas penas comigo. Pra maior parte das pessoas é lixo, mas são meu pequeno tesouro".

   E com isso, ela desapareceu num piscar de olhos do homem. Ele coçou os olhos várias vezes tentando acreditar, perguntou-se se tinha bebido, mas não. No lugar onde a menina de olhos tristes estava, um punhadinho de penas foscas, sem brilho, um pequeno milagre que tinha existido, e tinha acabado, sumido, desaparecido.
    Um pequeno milagre entre os homens, e ninguém se deu conta.



terça-feira, 1 de maio de 2012

Lágrimas e Chuva...

Hoje acordei com essa música do Kid Abelha na cabeça.

Não existe um motivo plausível ou lógico pra isso, às vezes a gente simplesmente acorda pensando em algo, e tem dificuldades de tirar isso da linha racional.

E ao ouvir, e finalmente matar a vontade (apesar de saber de cor a letra), é que veio aquele peso ao coração, aquela tristeza aparentemente inexplicável.

Sou pequeno, sou imperfeito.
Estou fazendo meu máximo, mas parece que às vezes não é o suficiente.
Queria mais sorrisos nos rostos das pessoas, pra que eu tivesse um motivo para sorrir por mim mesmo.


Solidão é quando você diz pros outros, quando você esconde no fundo da sua alma, acaba se convencendo de que o nome é "melancolia", uma sensação nobre dos poetas de antigamente.

Mas é realmente isso que queremos sentir?

São perguntas demais, pra pessoas pequenas diante da imensidão, de um mar de dúvidas e incertezas.

Pode ser que eu esteja assim também porque lembrei de você, de tudo (o pouco) que vivemos, e sei que por mais que eu deseje, nunca terei essas sensações novamente.

Chega a um ponto na vida em que estar sozinho deixa de ser ilógico, e passa a ser a única solução; sobretudo quando você tem uma multidão de pessoas a quem ama e que deseja cuidar, que prometeu cuidar.





Meu professor uma vez me perguntou "E quem cuida de você, se você passa tanto tempo cuidando dos outros?" E eu respondi: "Ninguém, a gente esconde o que sente pra não preocupar os outros, toma as dores deles pra si até que eles estejam felizes, e da felicidade deles juntamos forças pra seguir adiante"

Talvez seja a resposta mais inocente, e ainda assim, a melhor delas acerca do que é a vida: Fazer os outros felizes.