sábado, 29 de dezembro de 2012

Refúgio

Ela abriu os olhos, devagar. A luz do sol machucava seus olhos, fazia com que ela se protegesse com a palma das mãos. Era uma manhã de primavera, com pequenos insetos pela grama, subindo em suas pernas, enquanto o farfalhar da grama fazia seus ouvidos coçarem.

"Atrasado de novo", ela pensou; e sentou-se, olhando à volta. famílias felizes brincando no parque, aproveitando alguns instantes antes do almoço. Apesar de ainda manhã, a hora já fazia-se bastante avançada.

Era sempre assim, e ela nunca aprendia. Devia passar a chegar mais tarde, visto que ele sempre se atrasava. Só porque tinham combinado de almoçar juntos e ela já estava ficando com fome. Dois meses de namoro e ele não tomava jeito. Engraçado que, quando criança - ela pensava- ele era sempre pontual; ela sempre o via já na escola enquanto ela ainda cruzava os portões...

E pensar que naquela época, ela não ia muito com a cara dele; o cabelo bagunçado, aquela tira de couro no pulso, que ele chamava de pulseira, os tênis com cadarços diferentes, tudo incomodava. Pode ser que ela estivesse enganada também, ela já se sentia atraída e não tinha consciência disso.

Os minutos passavam e nada de ele aparecer. Ela tentou ligar, mas encontrou apenas a resposta da caixa de mensagens. Ele não viria, tinha que se conformar com isso. Tinha tomado um cano.

Levantou da grama e foi andando na direção da lanchonete mais próxima; já que o almoço romântico tinha sido estragado, pra quê se incomodar em comer direito?

Foi quando ela o viu, pelo canto do olho. Não sabia quem era, mas tinha a nítida impressão de já tê-lo visto antes. Um arrepio percorreu sua espinha, ainda que não soubesse o porquê; mas tão rápido quanto ela tinha visto, ele desapareceu. Devia ter sido apenas impressão.

Ela comeu seu sanduíche devagar, ainda um pouco contrariada, mas não podia fazer nada naquele momento, apenas chamar a atenção dele quando se falassem. Tentou ligar novamente; desta vez ninguém atendeu. A primeira coisa que ela pensou foi "esqueceu o celular em casa"

Estava desapontada, desanimada. Pegou o ônibus e foi cabisbaixa pra casa.  Mudou de idéia no meio do caminho. Já que ele não teve consideração por ela, ela ia passar o dia fazendo coisas que gostava. Desceu na esquina do shopping, foi ao cinema, sessão dupla, porque ela julgava merecer, com bastante pipoca e refrigerante. Light, claro.

Riu de uma comédia romântica pastelão, daquelas que desde o início você sabe o que vai acontecer, e emendou com um filme de ação, daqueles com tantas balas e explosões que você acha que vai encontrar alguma cápsula perdida pelo cinema. Andou pelos corredores do shopping, mas nada chamou sua atenção o bastante pra comprar.

Mas ao virar um corredor, jurava tê-lo visto novamente, o homem que tinha visto mais cedo; e tão rápido quanto antes, ele novamente sumiu. Seria coisa de sua imaginação? Bem possível que fosse. Já que seu namorado não aparecia, homens misteriosos a estavam observando. Só assim pra se sentir desejada né? Em imaginação.

Riu sozinha enquanto via o sol descendo no horizonte através da parede de vidro. Já era tão tarde assim? Então era verdade que quando as pessoas se divertiam o tempo voava.

Não estava tão longe de casa, decidiu caminhar um pouco, pensar na vida, e em como aquele dia pra si mesma tinha sido bom.

Estava ali, caminhando, absorta em seus pensamentos, e nem reparou nos passos atrás dos seus. Quando se deu por conta; o coração acelerou, ela empalideceu e forçou as pernas pra tentar correr; todo o resto era  escuridão. Ela tentou gritar, e de repente, abriu os olhos.

Um sonho, um maldito pesadelo.

A dor a atingiu de repente, o sabor metálico na boca, que ela não conseguia fechar e não entendia o porquê, apenas sentia algo de metal, que a impedia de fechá-la. As mãos presas numa espécie de mesa. As pernas latejavam, como se estivem passando do período de dormência; sentia que estava nua, mas não lembrava de como tinha ido parar ali.

Invocou a todos os deuses e santos que conhecia. Foçou as mãos tentando, em vão, libertá-las, tentou erguer o corpo, mas viu que não conseguia.

Foi quando o cheiro tomou conta dela. Cheiro de excremento. Forte, como se não fosse limpo há muito tempo. Sentiu o vômito se formando na garganta dela; quis fechar a boca pra impedir e não conseguiu. Estava ali, debruçada, com aquela poça de vômito na frente do seu rosto, nua, naquele cômodo escuro.
Teve vontade de chorar quando o desespero tomou conta dela, mas por algum motivo as lágrimas não vinham.

Ouviu um ranger de metal seguido do surgimento de luz. Uma silhueta masculina "ahn, você se sujou? Vou ter que limpar de novo?" seguido da porta se fechando novamente. Ela ouvia os passos dele chegando perto, sentiu um pano fétido passado pelo seu rosto, limpando seu vômito. "Seja uma boa menina que logo eu trago sua janta".

Ouviu os passos dele cada vez mais distantes, e a luz inundou o cômodo novamente. Desta vez ela o viu, seu namorado. Uma massa de carne inerte, com o pescoço virado num ângulo impossível, perto da porta. As lágrimas caíram, finalmente. Não era sonho, era o que tinha acontecido realmente; ela estava ali, nas mãos de um desconhecido.

Ele acendeu a luz de repente. Os olhos lacrimejantes dela fecharam dolorosamente. "Ahn... está chorando? Está com saudades? Acho que está sentindo falta de mim... eu vou cuidar de você"

E ela nem podia gritar quando o viu abrindo o zíper da calça e se dirigindo para as costas dela. Não podia se mexer, não podia gritar, só podia chorar, e sentir dor. Decidiu então fechar os olhos, e pedir com todas as forças que sonhasse, sonhasse com um lugar longe dali, de uma vez por todas.

sábado, 17 de novembro de 2012

Desejando

Por onde passava via os laços entre as pessoas. Mãos que se tocavam, lábios que se encontravam, olhares esguios que trocavam confidências.

Não com ele. Ele colocava as mãos nos bolsos da jaqueta e olhava para os lados, com a cabeça levemente inclinada pra baixo. O vento frio bagunçava ainda mais a franja desajeitada dele. Todos os amigos já tinham dito que a época já tinha passado; não pra ele. Ele gostava daquilo e não dava trabalho pra pentear.

O clube estava cheio, dava pra saber antes mesmo de chegar, pela quantidade de garrafas vazias abandonadas junto ao meio fio e pelas latinhas entulhadas em volta da lixeira. Uma trilha de pontas de cigarro tornava tudo mais fácil. Ele se lembrou de economizar, já que só tinha meio maço.

Na porta, a fila já virava a esquina. Não que isso fosse problema pra ele. Conhecia os DJS, conhecia o dono da boate; cumprimentou a quem devia e entrou, o nome dele já estava na lista.

As músicas de sempre, várias pessoas conhecidas, de longa data até. Ele foi até o bar e pegou uma cerveja barata; eram as melhores de se beber em boate. Subiu as escadas até o camarote, cumprimentando os seguranças no caminho.

A moça da lojinha veio ao seu encontro com um abraço apertado, um beijo no rosto. Tanto tempo que não se viam. É, ele estava um pouco sumido das baladas porque não via mais tanta graça assim. Ela dizia que entendia, que era coisa da idade mesmo, de procurar novos ares. Namorados ou namoradas? Nah, ninguém. Solteiro na pista e procurando, mas tava difícil.

Ela voltou pro trabalho dela, ele sentou no sofá vermelho e ficou olhando a pista lá embaixo. A interação entre as pessoas era fascinante. Alguns trocavam olhares, outros trocavam toques. Uns poucos pediam pros amigos os apresentarem. Ele se levantou e começou a dançar, desengonçado. Estava se divertindo, ou assim parecia. Alguns meninos subiram no palco e fizeram coreografias, ele riu enquanto tomava mais uma cerveja.

Lá pelo meio da noite ele desceu novamente, passando no meio da multidão. Os reservados do banheiro todos ocupados, dois pares de pernas podiam ser vistos em cada um deles. Não precisava ser vidente pra saber o que estava acontecendo. Ele andou até a parede, no mictório e abriu o zíper, cantarolando enquanto deixava a cerveja sair. Um cara parou do lado dele, começou a fazer o mesmo, dando espiadas de leve. Com um sacudir de cabeça ao mesmo tempo em que abotoava a calça e um pequeno riso tímido, o rapaz saiu sem nem ao menos lavar as mãos. Bem, não tinha papel pra secar mesmo.

As músicas ficavam mais lentas, podia ver os casais abraçados na pista, trocando beijos, alguns trocavam carícias impróprias. As luzes vermelhas e azuis incidiam exatamente sobre ele; e ele se sentia feliz; e ao mesmo tempo incompleto, mas não sabia o que faltava pra ele.

Voltou ao camarote e acendeu outro cigarro e outro depois. Talvez estivesse ficando velho pra este tipo de coisa. Talvez devesse frequentar outros lugares, ver outras pessoas. Talvez devesse desejar coisas diferentes.

Mas naquele momento, ele só conseguia olhar pra pista e ver a quantidade de casais; as pessoas juntas, de mãos dadas, e enquanto na mão dele, um cigarro e ocasionalmente uma cerveja. Talvez aquela não fosse a praia dele mesmo.

Terminou o cigarro, despediu-se de todos antes do final da festa e saiu. Não tinha ninguém esperando por ele. Ia pegar um táxi pra casa, que era mais confortável. A madrugada -que madrugada ? Era quase manhã- continuava fria, e ele fechou a jaqueta. Caminhava devagar em direção ao ponto de táxi perto da esquina.

E foi quanto tudo ficou preto por um instante

Ele ouviu um cantar de pneus, mas não sabia ao certo de onde tinha vindo.

Abriu os olhos pra ver rostos desconhecidos sobre ele. Quem eram aquelas pessoas? O quê estavam fazendo ali?

Foi quando se deu conta de que podia ver o sol. a moça inclinada sobre ele movia os lábios, mas ele não conseguia entender o que ela dizia. Tudo era tão estranho.

A moça continuava inclinada sobre ele. Ela estava chorando? Será que ela tinha olhado na direção do sol? Sem saber por qual motivo, algo dentro dele mudou, e ele podia sentir sua mão se movendo em direção ao rosto dela.

A mão dela encontrou a dele no caminho. Era quente, macia. Ele desejou poder segurar a mão dela por mais tempo.

E fechou os olhos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Diferente

Desde criança sei que não sou como os demais. Algo dentro de mim nunca pareceu certo, e foi bem antes do divórcio dos meus pais. Não adianta jogar a culpa nisso agora, como eu vejo muita gente fazendo: "ahn, é culpa dos meus pais que não me amavam, é culpa do meu pai ter saído de casa, é culpa da minha mãe ter fugido com outro homem". Não é meu caso; sempre fui diferente de todos os outros, mesmo antes de saber o que significava.

Na escola eu tinha notas médias, era mais um rosto na multidão de meninas e meninos. Escola pública, não podia esperar muita qualidade ou exclusividade; andava com ambos grupos e ninguém parecia se importar; podia ser apenas a representação de mim enquanto estava com eles.

Mas nada permanece igual por muito tempo, as coisas sempre mudam, sempre se alteram, e quase sempre de forma desagradável para aqueles que são minoria. A minha diferença começava a gritar pros outros, começava a impedir que as outras pessoas chegassem a mim e vice-versa. Enquanto que pra mim, continuava a mesma pessoa, nos mesmos mínimos detalhes, fazendo as mesmas coisas.

A adolescência chegou, o corpo começou a mudar, e não sei como, mas o meu mudava ainda mais devagar. Parecia que eu não ia mudar. Eu não queria mudar. As meninas já desfilavam com seus sutiãs, os meninos exibiam orgulhosos sua penugem debaixo do braço e eu mostrava um sorriso amarelo de descontentamento.

Casais começaram a surgir. Bilhetinhos trocados, passados de mão em mão durante as aulas. Mãos dadas no intervalo. Aquele roçar de lábios com a boca fechada que chamavam de beijo. Mas não comigo, nunca pra mim. Ou assim eu achava.

O nome dela era Laura, e no momento em que eu a vi, tudo ficou diferente. Algumas semanas se passaram até eu vê-la de novo. Conversamos; ela riu, me olhou esquisito e se despediu. Não mais a vi. Ainda sonho com ela de vez em quando, do sorriso sem-graça, do olhar desejando que eu saísse de perto; meu peito dispara quando acordo. Dá uma sensação triste de vazio; o peso de ser diferente faz com que minhas costas se curvem aos poucos, ou assim parece.

Meses se passam, muitos meses na verdade; os anos vão se passando devagar, e eu vejo as pessoas mudando, a cidade mudando, o peso da diferença nas minhas costas cada vez maior. Lido com os olhares, os insultos, as pessoas que não entendem ou não querem entender como sou.

Um dia, voltando à noite, um pastor me abordou, me jogou no chão e orou pela minha alma, enquanto mulheres vestindo sacos, ou túnicas gritavam ao seu redor. Enquanto eu me recompunha e corria, me chamavam de demônio, mandavam eu voltar pro inferno. Não é o tipo de coisa que vemos.

Eu sei que tem algo diferente com a minha cabeça, e sou feliz com isso, não entendo a necessidade dos outros de me dizerem que é feio, que é errado, que é imoral. Não entendo a necessidade dos outros de se provarem tão melhores que eu em coisas com as quais não me importo.

Pessoas diferentes são protagonistas das mesmas tragédias, incapazes de mudar, sofrem sozinhas; buscam apoio em psicólogos, psiquiatras; buscam refúgio na bebida, nas drogas, no sexo... eu nem sei como são essas coisas. Masturbação mesmo eu só fui saber exatamente como era quando já tinha meus 16 anos. E olha que não achei lá essas coisas.

E eu vejo que as tragédias aumentam cada vez mais, e cada vez mais as pessoas me urgem a deixar esse meu lado diferente, a abraçar o que é comum, o que é certo, o que todos fazem. Cortar laços com as coisas erradas.

Então, com a pequena faca de limpar carne da cozinha, eu me livro do que é diferente, procuro fazer rápido pra não sentir dor.

O baque surdo não acorda ninguém, e o último barulho de que me dou conta é de um pequeno esguichar de  sangue que sai do meu pescoço.

Se não pensar, não preciso ser diferente; se não tivesse a cabeça que tenho, seria mais fácil.

Quem sabe agora pode ser fácil...


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Banco

Sentada, ela estava a esperar.

Os olhos fixos no horizonte, naquela tarde de sol escaldante. Pequenos insetos faziam uma festa pelo ar, mosquitos oportunistas banqueteavam-se nas pernas daqueles que esperavam o ônibus.

Ela ouvia com atenção as conversas dos outros, piscando apenas pra lubrificar os olhos. Ouvia histórias felizes e tristes; de reunião e de separação. Via pessoas subindo no ônibus com destino certo, via pessoas indecisas quanto ao próprio caminho. Via pessoas perguntando sobre o itinerário para o motorista.

Quando ela ficava cansada por estar no mesmo lugar, levantava e esticava as pernas, com delicadeza. O vestido florido que ela usava balançava de leve ao vento morno. O cabelo castanho claro, preso num coque; os lábios com um batom simples, sem cor.

Não podiam dizer que era bonita, mas também não era feia. Quantos anos devia ter? Trinta? Quarenta? Não dava pra saber ao certo; mas também, não tinha ninguém pra perguntar a ela. As pessoas apenas chegavam ao ponto, esperavam um pouco e seguiam seu caminho. Alguns nos ônibus grandes; outros nuns ônibus pequeninos e barulhentos. Alguns outros ficavam por muitos minutos, impacientes, batendo os pés no chão, proferindo insultos quando o ônibus finalmente apontava no horizonte.

Os ponteiros do relógio se moviam devagar e pequenas ondas de calor desprendiam-se do asfalto. Algumas senhoras recém-chegadas secavam o suor com lenços brancos, com monogramas. Coisas que não se via há muito tempo. Trajadas de preto; certamente iam a algum enterro; não que fosse importante.

Crianças andando de bicicleta, sem respeitar a distância entre os carros. Alguns adolescentes de skate. A mulher no vestido florido voltou a se sentar no mesmo lugar. Uma linha de formigas passava por debaixo do banco, cada qual com seu pedacinho de folha nas costas.

Um homem de terno sentou-se do lado dela; ofereceu um folheto, que ela educadamente aceitou e colocou na bolsa. Havia uma bolsa; pequena, ao lado dela. O homem se levantou, começou a falar e falar e falar, cada vez mais vermelho e suado. Fala com ênfase, com autoridade, por vezes cuspia pequenas gotículas de saliva. Ela parecia constrangida diante dele, que falava sem parar; tentou colocar a mão sobre a cabeça dela, ela se desvencilhou. Outras pessoas se aproximaram dele. Era óbvio que ela estava sendo perturbada. Colocaram o homem num ônibus e ele foi embora, enquanto duas mulheres falavam com a do vestido florido.

Ela parecia bem. Voltou à sua atividade habitual de olhar no horizonte, em direção ao final da rua, de onde vêm os ônibus. As pessoas tomaram seus rumos. Umas foram pra casa, outras pro trabalho. Logo ela estava sozinha novamente..

E quando o sol começa a descer por entre os prédios atrás da minha casa, eu vejo ela se levantar e andar de forma tímida, sempre no sentido da rua.

Ela anda devagar, mas num ritmo constante. Lá no final da rua, antes da curva, tem uma casa com um jardim tomado pelo mato. Ela abre o portão, que não tem chave e segue um caminho de pedras pequenas, no meio do matagal. Lá dentro tem uma casa antiga, com uma varanda clássica, e um banco de madeira, que já passou por dias melhores. Ela se senta e continua olhando.

É então que daqueles olhos inexpressivos parece cair uma lágrima, mas percebo que não são lágrimas dela. São minhas. Ela continua sentada, inexpressiva, olhando pra algo que eu não consigo determinar o que é.

Assim ela faz todos os dias. Ou pelo menos, tem feito isso todos os dias, inclusive finais de semana, já tem uns cinco anos que percebi. Sempre achei estranho aquela moça no ponto de ônibus em frente  à minha casa, ficar a tarde inteira sem pegar ônibus nenhum, nunca.

Acho que essa moça é triste. Acho não; tenho certeza. Ela parece estar esperando sempre por algo, algo que talvez nunca vá chegar. Talvez ela tenha perdido alguém, e esteja desiludida por isso.

Ou será que está deprimida? Vi na televisão que depressão é um caso sério, e hoje em dia muita gente sofre de depressão sem saber.

Qualquer que seja o problema dela, me corta o coração cada vez que a vejo sentada naquele banco, parada, inerte, congelada no tempo. Sempre com seus vestidos floridos e cabelos em coque. As bolsas, umas maiores outras menores do lado, sempre olhando no final da rua, esperando algo que não vem, aguardando um destino ignorado.

Por vezes, tenho pesadelos em que sou essa pobre mulher, e acordo gritando. Não com pena dela. Com pena de mim mesma. E medo. Muito medo de acabar assim, esperando por algo que nunca virá; vivendo uma vida vazia enquanto espero um fim.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Rótulo - gay

Tudo bem em ser gay...

Mas tem que ser discreto, brother macho, marrento, pegador de mina; não pode ter pato na garganta nem desafinar quando fala. Não pode rebolar quando anda, nem mexer a mão.
Tem que ser lek firmeza, mesmo quando já passou dos 18 anos; tem que ser parrudo e malhado, nada de magrelo e nada de gordo. Tem que ter o bíceps pra mostrar, foto sem camisa no orkut, de preferência, só com uma cueca slip mostrando parte dos pentelhos.
Tem que curtir uma breja de vez em quando, mas não pode ter pancinha, tudo bem se não tiver gominhos, mas pancinha, dobra na barriga não pode.
Ajuda se curtir um beck, mas cigarro comum tb resolve né?
Tem que ser na encolha, no seu carro, ou na sua casa, porque ninguém pode saber.
Pode ter tatuagem, mas nada de nome de mãe e símbolo japonês. O negócio é escorpião, dragão, carpa no braço, esses aí é que são pika!
Pêlo no peito e na barriga até vai, mas favor depilar as costas e a bunda; aparar os pentelhos tb é bom.
Tudo bem ouvir umas músicas de viado em casa, mas nada de curtir Lady Gaga, Britney e Madonna, isso é coisa de viado, e eu só curto cara macho; tem que ser um pagode, um funk proibidão, uma eletrônica mandada, cara que é macho saca logo qual é.
O negócio é: tem que ser dotado. 18 cm pra cima, ou não quero nem papo. Não ligo se é passivo, versátil ou ativo; se não sobrar bastante na minha mão, não quero.
Não fica de conversinha, não pede webcam, já chama logo pra real.
Não tem essa de passar a mão, não tem esse negócio de beijo na boca, é joelho no chão, boca pra trabalhar, joelhos e cotovelos sobre a cama e a cara afundada no travesseiro.

O papo é o seguinte: Faço muitas exigências porque sou vazio e incapaz de satisfazer a quaisquer exigências dos outros.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Mensagem pra mim

Oi, tudo bom? Obrigado pelo e-mail.

Sabe, não devia dizer, mas eu sinto medo; de muitas coisas.

Acho que, com a vida que eu levei, e a forma como cresci, sentir medo era a reação mais normal e mais provável. Tenho medo de investir no novo, medo de confiar, me entregar e ser deixado, esquecido, ignorado.

É, eu até reconheço que não tivemos muito de uma relação né? Mas pelo menos a gente tentou e sobraram boas recordações. Eu acho que foram boas. Tá bom, algumas boas e algumas ruins, mais pro lado bom. Satisfeito? Imagino que vc deve estar rindo.

Eu tb sempre soube que você gostava de mim, de verdade, mas eu não tive essa capacidade de me comprometer, de me envolver completamente e me deixar levar pelas emoções. Não é que eu seja covarde, é que isso já se provou destrutivo na minha vida.

E olha onde estamos agora. Você pode negar, mas ainda guarda sentimentos por mim, e eu não estou nem aí pra isso. Claro, penso em vc como penso em qualquer outra pessoa. O fato é que eu tenho tentado, ativamente, sabotar meus próprios relacionamentos, me envolvendo com quem não liga pra mim.

É quase um vício, eu tento afastar quem parece que gosta de mim, pra tentar me aproximar de outros, e esses outros me afastam, traem minha confiança, me usam, me enganam. É foda.

Sou imperfeito, e imperfeito pra caralho às vezes. Sei o que quero, acredito eu, mas na maior parte do tempo não tenho os mecanismos pra alcançar. Sinto falta de alguém do meu lado; alguém que acredite em mim, que me dê força, que me dê mais que sexo, que me ofereça companhia, que me faça perceber - e acreditar - que consigo, e não, não pode ser você.

Não pode ser você porque sempre lembrarei de tudo o que aconteceu entre nós, cada briga, cada discussão, cada lágrima que vc deve ter derramado, ou que eu derramei, cada momento de solidão que passamos, mesmo quando estávamos juntos.

Se a gente tivesse continuado, como você queria, pode ser que, eventualmente, por um motivo ou  outro a gente viesse a brigar por coisas que somos muito diferentes, e íamos terminar nos magoando. Ainda guardamos mágoa um do outro? Não sei, pode ser que sim, mas pelo menos nos falamos ocasionalmente. Você com seu sarcasmo, eu com minha ironia e desprezo pelo alheio.

Acho que não sei como encerrar, só dizendo "obrigado por se preocupar comigo", mas sei que vc não gosta de agradecimentos. Tb não vou dizer "pode contar comigo", porque sei que vc não funciona assim. Então... o melhor pra nós dois. Você com seu mundo e eu com o meu. Tomara que, de alguma forma, a gente se dê bem na vida. Que eu encontre um cara que gosta de mim como sou, e que me valorize, e que vc encontre um cara pra cuidar, e que seja capaz de cuidar de você.

Um beijo

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Mensagem pra você

Oi, tudo bom?

É, é um péssimo modo de começar um e-mail. Ainda mais sabendo que você pode nem ler, jogar fora direto, marcar como spam.
Aliás, nem sei se você ainda usa este e-mail, mas eu precisava escrever, e era coisa demais pra uma sms.

Outro dia eu estava fazendo backup das minhas coisas no PC, encontrei fotos suas, fotos de nós dois, fotos minhas que você tirou, e fiquei na dúvida sobre apagar ou não. Não temos mais nada; não terminamos bem, até voltamos a nos falar depois de um tempo, mas eu não sei exatamente onde estamos.
Sabe, vira e mexe eu me pego pensando em você, nas coisas que aconteceram e nas que podiam ter acontecido caso ainda estivéssemos juntos.

Acho que o mais difícil pra mim foi lidar com o "eu não sou capaz de te amar do jeito que vc me ama". Sempre fomos muito diferentes, a forma como vejo a vida é bem diferente da sua, tive experiências que você não teve, e vice-versa; relacionamentos não são construídos em cima de equivalências, mas em cima de reciprocidade. Não há como medir quantidade de amor, ou quantidade de atenção.

Uma das coisas de que eu me arrependo é que num ímpeto de raiva eu deletei parte das suas mensagens. Às vezes, por mais simples que fossem, me traziam um sorriso sincero, por pensar em cada coisa boa que vivemos; mas agora é passado, não é nada que eu possa fazer e mudar isso. Ainda guardo as lembranças, a melhor coisa de nós que pode haver agora.

Não vou mentir; sei que você ainda mexe comigo, e acredito que vc saiba disso também. Queria ser capaz de mexer com vc como antes, mas isso não está no meu controle. Imagino que outras pessoas já tenham passado pela sua vida, assim como algumas passaram pela minha; algumas deixaram marcas agradáveis, outras a gente acha melhor esquecer... é um mal da vida né? Não tem como fugir.

Mas sabe, eu me importo com você, de verdade. Mesmo que nunca mais tenhamos nada, que não passemos de conhecidos que se cumprimentam em datas festivas, eu quero ser capaz de te oferecer apoio quando vc precisar; quero que vc se sinta confortável novamente comigo. (Claro que seria bom sair com vc ocasionalmente e dar uns amassos, mas aguento de boa viver sem)

Nem vou ficar escrevendo muito mais, sei que vc tem seus problemas, e não precisa ouvir os meus. Só queria dizer novamente que, tô aqui pra vc, sempre estive e sempre estarei. Se um dia vc disser que quer que eu me afaste, eu vou me afastar; mas vc me conhece, sabe que gosto de cuidar de vc, e de outros tb, mas vc é especial. Vc fez parte da minha vida, e uma parte extremamente significativa, da qual o tempo não vai apagar. Não há como negar ou esconder: tentei te amar como pude, como sabia, como achei que daria certo. Não deu certo pra nós, estamos separados, mas não deixei de te amar; não deixei de desejar o seu bem, não deixei de pensar em vc e como quero que você seja feliz; lamento se isso te incomoda, mas precisava dizer.

E se chegou até aqui, fico feliz por não ter jogado fora. Às vezes, precisamos apenas de uma coisa boba e melosa como esta pra juntarmos forças e seguirmos adiante.

Não precisa me responder se quiser, não precisa dizer mais nada caso não se sinta confortável, só achei que vc devia saber. Sabe como é falar por horas é o meu negócio; dizem que eu sou bom com as palavras, e se vc puder aproveitar algo do que eu disse aqui...

Fica bem, nunca se esquece que antes de ser seu namorado, eu tentei ser seu amigo, e ainda quero.


domingo, 16 de setembro de 2012

Confissão

Ele estava mais bonito do que eu conseguia me lembrar. Talvez eu estivesse mentindo pra mim mesmo sobre ele ser feio, assim não ia doer tanto o fato de estarmos separados. Sempre é ruim afastar-se do que é bom, do que é gostoso, do que é bonito, e ainda mais do que junta as três qualidades.
Dedos se movendo silenciosos sobre as coxas, mostrando tensão. Os dentes cerrados, o olhar vago, sempre fitando  a porta na lateral esquerda da cafeteria. Ele não tinha mudado em nada, ou talvez eu tivesse mudado demais. Senti as pernas fraquejarem ao cruzar a porta, a respiração ficou pesada, e não havia como evitar.

Ao sentar, ele já está tomando café; eu decido pedir o mesmo. Antes que ele tenha a chance de dizer alguma coisa, eu o interrompo com a minha voz irritante. Preciso ter a chance de dizer tudo o que não foi dito.

"Sinto falta do 'nós', mas aprendi que o 'eu' é importante demais pra viver sob a sua sombra, esperando uma demonstração de afeto que nunca virá. Aprendi que seu medo de relações faz com que você embarque em inúmeras, sempre sabendo que não é capaz de se comprometer com nenhuma. Aprendi que estou melhor do jeito que estou, mas nada disso me impede de pensar que, se você tivesse me dado uma chance, se tivesse nos dado uma chance, eu realmente queria, e acho que conseguiria fazer você mais feliz.
Não importa o quão fortes e honestos sejam meus sentimentos; não existe relação criada apenas por uma das partes.
Não importa quantas chances eu ofereça, sei que você não aceitará nenhuma; e permaneceremos para sempre estagnados neste momento sem fim"


Ele parece perplexo. Não estava esperando por isso. Na verdade, nem eu estava. Tornou-se maior do que eu e tinha que ser dito.

"Eu quis te encontrar pra dizer que estava errado"

Pode ser que estivéssemos os dois errados, mas não havia mais tempo hábil pra desculpas, ou pra consertos. Infelizmente, os danos já haviam sido feitos, para ambos..


O que restava pra nós dois era apenas terminar o café, pegar a conta e seguir cada um seu caminho, amargurados pelas lembranças do que poderia ter sido.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Companhia



-Você reclama que está sozinho, procura em inúmeros cantos por um cara que te faça feliz; e falha em perceber que já tem um cara disposto a construir sua felicidade junto com você.
Mas não, esse cara você não quer, você quer o desafio, a incerteza; você escolhe a dúvida. Não venha me culpar quando eu desistir de você. Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Tentei te ajudar a ser feliz. Você é quem não quis.

As palavras soavam ásperas, eu sabia disso, mas elas tinham que ser ditas. Ficaram entaladas por tempo demais na minha garganta. Por mais que eu o amasse, eu sabia que ele não queria um cara legal, ele estava sempre procurando pela emoção de um canalha, de alguém que flertasse com outros, quem sabe que o traísse.

Eu ofereci tudo o que podia. Afeto, atenção, carinho, amor. Ofereci amor? Ofereci aquilo que entendia como amor, mesmo sabendo que ele seria incapaz de retribuir. Porque amor é assim, você simplesmente sente, você simplesmente faz, sem se importar se terá retribuição, se vai ser recíproco.


Ele levanta os olhos pra mim pela primeira vez desde que eu comecei a falar. Isso não é uma conversa, apenas eu digo as coisas; ele balança a cabeça e sinaliza que entende. Não consigo funcionar assim; preciso da voz das pessoas assim como preciso de ar. Preciso que verbalizem o que sentem, preciso que me digam que não estou desperdiçando meu tempo falando com as paredes.

A voz dele sai tímida, como sempre, as palavras entrecortadas.

-Eu não procuro outras pessoas
-Mas também não se sente feliz comigo
-É... porque...
-Porque podemos dar errado, podemos discutir e brigar e nunca mais nos falarmos. Podemos dar certo e ficar juntos o resto da vida. Podemos dar certo por um tempo e querer coisas diferentes depois. O bom do futuro é que ele vai se construindo um dia depois do outro e depois e depois; não adianta pensar agora; não adianta calcular agora porque eu sou incapaz de entender você, você é incapaz de entender a mim. Somos todos tão absorvidos na nossa bolha de realidade relativa que em algum momento perdemos a capacidade de entender uns aos outros.
-Você fala muito difícil pra mim
-Eu falo muito. E falo o que sinto, esse é o problema. Dizem que eu sou bom em sentir as coisas; eu acho que sou bom apenas em falar e falar sem parar.

-A gente não pode ficar junto...
-Eu sei o que você vai dizer. Que não podemos fica juntos porque você acha que eu gosto mais de você do que você de mim. Mas somos pessoas diferentes, com experiências diferentes na vida. Nunca teremos o mesmo posicionamento com relação a algo. Não se trata de amar mais ou amar menos, nunca foi isso. Não existe quantidade de amor. Ou você ama, ou você não ama.

-Eu não sei se amo.
-Não sabe porque não quer tentar; mas eu não sei explicar o porquê, as coisas perdem um pouco do sentido e toda a graça quando o seu corpo não está perto do meu. É no encontro da minha mão com a sua, do seu sorriso com meu que as coisas parecem melhorar. É isso que me traz um sorriso.

Ele sorriu, tímido, novamente eu tinha falado demais.

-É por isso, por te amar, por querer você perto que eu estou sendo paradoxal e estou partindo. Se por hoje ou para sempre eu não sei ainda. Eu vou encontrar aquilo que perdi aqui dentro do peito, e quando eu encontrar, pode ser que eu volte; pode ser que você perca o medo que tem de mim, pode ser que as coisas se resolvam.
-Você tá falando com muita incerteza.
-Só posso ter certeza do presente. Por mais forte que seja o que eu sinto por você; o que eu sinto por mim mesmo vai superar; sempre. Sempre fui e sempre serei minha melhor companhia. A segunda melhor sempre foi você, mas acho que fui incapaz de demonstrar isso.
-Não, não foi.
-Promete que se cuida? Promete que vai continuar vivendo sua vida e tentando ser feliz?
-Eu sempre tento. Mas queria continuar te vendo.
-Você sempre sabe onde me encontrar. Eu sou a segunda melhor companhia que você podia querer, mas infelizmente você não quer.


Um abraço, um beijo e em seguida, o bater da porta. Foi difícil? Até que foi, mas finalmente eles estavam prontos pro hoje; os dois. E teriam que lidar com aquilo que mais temiam: eles mesmos.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Carta

Ela parecia muito séria enquanto suas mãos caprichosas faziam o desenho de cada letra. Sabia que não podia errar; não podia vacilar. Só teria essa chance de escrever tudo o que queria.

"Sabe, invariavelmente nós chegaríamos ao fim, com tudo o que aconteceu entre nós; do começo tumultuado passando pelas brigas, discussões, vexames públicos; sua incapacidade de me entender e a minha incapacidade de permanecer a mesma.

Eu sou uma reinvenção constante, preciso disso como preciso do ar, você precisa do seu espaço, precisa de solidez.

Você diz que todos são iguais e não aguenta mais procurar, tão pouco aguenta esperar; por isso estava terminando comigo. Eu sabia que você já tinha outra; sempre soube.


Seja a diferença que procura nos outros. Antes de exigir demais, pense em doar-se mais um pouco.

É por isso que nunca demos certo, eu sempre pensei em você antes de pensar em mim, e você fez o mesmo. Sempre pensava em si mesmo em vez de pensar em mim.

Esse é um adeus sem sabor amargo, sem ressentimentos."


Ela sorriu ao terminar. Precisava de um banho. Deixou as roupas caírem pelo chão do apartamento. Um módulo de solteiro simples, sem nenhum conforto, mas que bastava, com uma janela ampla que, quando você se esticava um pouquinho pra direita, podia ver o mar ao longe. Não era o que ela tinha sonhado, mas nem todos os sonhos se realizam.


A água fria era quase um carinho pra seu corpo até então negligenciado. Ela aprendera quando criança que os banhos frios faziam bem pro organismo, mas mesmo assim se rendia aos banhos quentes. Ainda tinha a remota esperança de um apartamento com banheira, mas talvez não devesse sonhar com tanto; já que apenas o hoje interessava.

Olhou no relógio enquanto se secava; já estava anoitecendo e ela não pretendia ficar parada. Escolheu um par de brincos e pulseiras, colocou a calcinha nova, que tinha comprado e estava esperando uma ocasião pra usar. Decidiu não usar o vestido; era muito clichê. Preferiu uma boa e confiável calça jeans, bem justinha, e uma blusa confortável, que realçava seu seios.

Olhou novamente para o que havia escrito. O estilete ainda estava sujo de sangue sobre a cama, a lado do corpo inerte do namorado. Admirou sua letra, gravada nas costas dele. Aquilo sim era arte. A beleza do vermelho em contraste com o negro da pele dele e o branco dos lençóis; cada um dos inúmeros tons de vermelho que ela era capaz de distinguir. Um sorriso verdadeiro brotou em seus lábios enquanto ela caminhava e abandonava a janela.

Aqueles que testemunharam, disseram que ela não fez mais que um baque surdo quando chegou na calçada, ainda rindo. Os amigos disseram que ela havia dado tudo de si pra ele, e não restara nada pra que se quebrasse com o impacto.

A carta, entalhada na pele do namorado foi fotografada e reproduzida em vários jornais e na internet; Os poucos quadros dela que estavam à venda sumiram. Todos queriam para si um pedaço da loucura dela. Quanto a ela, queria apenas... não, talvez ela não quisesse nada. Talvez ela tenha compreendido tudo enquanto escrevia, por isso seu sorriso. E é um segredo que ela nunca irá compartilhar.


segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Transitório

Ela batia ansiosa com os dedos das mãos na madeira do banco. Ele estava atrasado, de novo; e desta vez mais de quinze minutos. Pegou o celular pra olhar casualmente as redes sociais, uma mensagem dele pedindo desculpas porque o trânsito estava um inferno. Ela riu.

Provavelmente ele nem tinha saído do escritório ainda. Vida de office-boy era dura, ela sabia; mas tinham decidido pelo namoro, não? Ele tinha que se esforçar também; o tempo em que ela estava ali, plantada, esperando por ele, podia estar fazendo a resenha de um dos livros que o chefe tinha mandado. Trabalhar na editora não estava sendo fácil, mas pagava as contas e ainda garantia um dinheiro miúdo pra épocas mais difíceis.


Mais dez minutos de espera e finalmente ele estava lá, despenteado, sem fôlego. Era engraçado de ver, e ela não conseguia evitar um sorriso infantil de reprovação. Ele trouxe flores um tanto quanto amassadas; já meio murchas, mas o importante foi a intenção, e ela o abraçou com força, deixando-o sem-graça. Ele não estava muito acostumado com demonstrações públicas de afeto.


Pegaram um na mão do outro e continuaram conversando sobre seus dias, sobre seus empregos, sobre suas famílias irritantes. Toda sexta, no final do expediente, alguns saíam pra beber; eles saiam pra conversar. Eram amigos desde quando? Desde os tempos da escola, sexto ou sétimo ano; separaram-se no ensino médio; reencontraram-se por acaso já no finalzinho da faculdade: uma amiga dela estava saindo com uma amiga dele; não durou muito, infelizmente, mas os reaproximou.


Foram semanas de conversa online, alguns tweets trocados, algumas curtidas no facebook, poucos convites pra sair até que finalmente uma brecha no horário permitiu que se encontrassem; foram ver um filme qualquer, uma daquelas comédias românticas que servem pra que os casais tenham privacidade pra trocar alguns beijos no escuro do cinema.


Ele passou a mão por trás dos ombros dela, ela inclinou o pescoço, eram apenas mais um clichê de casal entre tantos outros, o arrepio na coluna, a língua passada discretamente nos lábios pra umedecê-los, a dormência no braço depois dos minutos iniciais, a mão dela dedilhando os botões da camisa dele. Tudo parecia bom, e foi se repetindo, e repetindo, e repetindo mais e mais.


Mas nem tudo na vida deles podia ser resumido em felicidade: Ela era bastante regrada, e ele tímido até demais. Ela achava que ele era virgem, e ele realmente era. Não ficou por muito tempo. Ele achava que ela era mente aberta demais, e ela realmente era. Não demorou muito pra que ele começasse a ver o mundo com outros olhos.


O maior problema nele era a impontualidade. O maior problema dela era a inflexibilidade; e eles às vezes faziam piadas um do outro enquanto tomavam sorvete nas sextas-feiras. Nem sempre transavam, só quando ele recebia um extra no serviço. Ele fazia questão de pagar o motel, porque se sentia desconfortável em fazer no apartamento dela.


Os dias foram passando, as semanas correram, os meses praticamente se desfizeram enquanto as páginas do calendário eram jogadas fora. Ele conseguiu uma promoção, e um salário mais gordinho; ela foi chamada pra ministrar um curso sobre Literatura fantástica. Ainda não sabia se ia aceitar, ainda não tinha pensado em como contar a ele.


Pra que as coisas ficassem mais difíceis, desta vez ele chegou antes, estava esperando por ela, com um sorriso, e uma declaração.

"Eu te amo"


Ela engoliu em seco. Claro que eles já haviam trocado juras de amor, mas desta vez era diferente; ele realmente falava sério. Ela controlou o pânico dentro de si e domou a respiração


"Precisamos conversar"


Ele empalideceu, mas consentiu.


"O quê é o amor? Sejamos objetivos: temos o aumento da temperatura corporal, assim como o aumento do fluxo sanguíneo em nossas veias, o que faz com que o coração bata forte. Temos a boca seca o cérebro que se perde em fantasias possíveis e impossíveis ao lado de alguém que nos faz feliz."

"Eu te faço feliz?"
"Por conta disso sempre estivemos juntos; mesmo separados. Mas eu tenho que dizer que a gente tem que se afastar por um tempo."

E ela contou do convite; mesmo triste, ele aceitou, resignado. Ela não pertencia a ele, nunca pertenceu; por um acaso do destino eles trilharam o mesmo caminho juntos.


As sextas-feiras estavam um pouco mais vazias agora. Ela estava em outra cidade, trabalhando; ele decidiu fazer uma outra faculdade à noite. Os meses trouxeram os primeiros fios brancos dela; que ela rapidamente escondeu. Aproveitou pra mudar o castanho do cabelo pra um tom de cobre. Ela sempre quis cabelos acobreados. Pra ele o tempo trouxe um cavanhaque, e logo em seguida uma barba. Alguns quilos a mais também, e graças aos deuses a calvície não deu sinal.


Ela finalmente lançou o livro que ela tanto queria, mandou convites a todos os amigos e conhecidos. Ele não poderia ficar de fora, mas estava ocupado cuidando dos gêmeos. Pois é, ele tinha casado com uma mulher até parecida com ela, e teve a sorte de ter gêmeos.


Talvez sejamos apenas pó de estrela; esperando, procurando pelo universo alguém disposto a queimar na atmosfera conosco, na mesma sintonia...


São momentos transitórios de felicidade incandescente, sufocante, arrebatadora; do tipo que nos faz lembrar sempre e sempre e sempre, e reviver esses momentos na memória quando as coisas não vão tão bem.

E ela pensa que deveria ter dito "eu também te amo", mas é tarde demais pra isso.

domingo, 19 de agosto de 2012

Simplicidade

Pendurado sobre a janela do meu quarto, o mensageiro dos ventos canta devagar, enquanto os raios pálidos de um sol preguiçoso avançam sobre meu refúgio.

Os dias tem sido cansativos; cada vez mais trabalho a ser feito, não tenho mais tanto tempo pra me dedicar aos meus livros, como de costume; não tenho mais tempo pra dias preguiçosos de ficar enrolando na cama, rezando pra cochilar novamente.

Às vezes fica difícil de lidar com o criticismo das pessoas mais velhas que eu, adeptas de uma forma de educação mais tradicional e menos participativa; eu aprendi que o conhecimento só pode ser verdadeiramente construído em conjunto; parte do meu prazer em ensinar acontece porque sou capaz de construir a aula junto com meus alunos.

Quase sempre eu desanimo em ver que preconceitos religiosos ainda são aceitos abertamente. O fato de ser gay, ou lésbica não deveria ser mais importante do que a qualidade da aula; o fato de não ser cristão não deveria pesar nos ouvidos das pessoas; mas é apenas isso que a maior parte das pessoas enxerga; um rótulo.

Nos dias preguiçosos, é isso que eu gosto de fazer, pensar na vida, analisar o que não está caminhando direito e imaginar cenários e alternativas; coisas que eu posso fazer ou evitar, que façam diferença. Ainda que eu veja a mim mesmo como pessimista, existe uma ponta de otimismo gritante, cada vez que falo do meu trabalho.

A vida não é simples de forma nenhuma, mas agir com simplicidade se faz necessário. Existem coisas que simplesmente não somos capazes de mudar, mas não quer dizer que devemos desistir. Se uma tentativa resultar em fracasso, nada nos impede de sentar, digerir a ideia, e tentar novamente num futuro, seja ele próximo ou distante.

Agir simples, pensar simples, viver simples; imitar os pequenos raios de sol persistentes, ganhando milímetros de cada vez enquanto avançam pelas frestas da janela entre-aberta. Poder ouvir e distinguir cada nota do mensageiro dos ventos, e cada conversa das pessoas que no cercam são basicamente a mesma coisa. Alguns soam bem aos ouvidos, alguns nem tão bem; mas são parte da vida.

Às vezes é difícil, mas desanimar ou desistir não são opções; enquanto pensamos na vida como complexa, esquecemos de ver as coisas simples do nosso dia-a-dia.

Simplicidade às vezes é abrir os olhos e esquecer dos problemas, não porque eles não estão lá; mas porque eles estão lá, junto com todas as outras coisas que fazem do mundo uma experiência única.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

Maldição

Depois de pensar, repensar, escrever e reescrever, decidi postar esse conto. Como muitos outros, estava perdido na minha pasta de idéias...



   O bater da porta me traz de volta à realidade apenas para que eu perceba a bagunça do apartamento. A louça amontoada sobre a pia, e uma camada perceptível de pó sobre os móveis.
   A televisão da sala transmitindo apenas estática, e eu lembro que há muito deixei de pagar a assinatura da tv a cabo; preocupo-me apenas com a internet; tem de tudo no youtube, sem que eu precise me preocupar com os horários.
   Acendo um cigarro, mas não sem antes apertar a bolinha. Não que eu goste do sabor diferente, tem o mesmo sabor de sempre, mas acho que me viciei no barulhinho, naquele pequeno estalo insignificante. Sempre fui bom pra gostar de coisas insignificantes; acho que por isso acabei gostando dele.
   A primeira vez em que nos vimos deu tudo errado; cheguei atrasado, cansado, ele tinha saído do trabalho também, não tava com muito saco. Pensei em ligar pra desmarcar, mas já tava lá mesmo; e conversamos por horas e quando vimos, já estava na hora de irmos embora. Quis tomá-lo pra mim naquele instante, quis que ele fosse meu, mesmo sabendo que jamais teria sua posse.
    Saímos outras vezes até que finalmente fomos pra cama. Foi melhor do que eu imaginava, tenho que confessar. Todas as três vezes daquela noite. Acho que estávamos com muita vontade.

   Levanto da cadeira e decido que tenho que parar de pensar nessas coisas e lavar essa louça. Não sei onde eu estava com a cabeça pra jogar os restos de comida na pia; podia ter entupido essa porra toda e quem ia dar um jeito nisso? Nunca fui bom com essas coisas de consertos. Quando meu chuveiro elétrico queimava, eu não trocava a resistência; comprava outro. Agradeço a Deus pelo aquecimento a gás.
   O contato com a água fria me lembra da primeira vez que tomamos banho juntos, em que eu o abracei por trás e passei a mão em seus cabelos, e ele arqueou as costas. Queríamos banho quente, mas aquele chuveiro não estava ajudando.
   Engraçado, nada na nossa relação ajudava: Nossos horários conflitantes, nossos pais, nossos gostos musicais, nossas preferências no sexo... eu sempre fui mais careta, o mais baunilha da relação, você queria sempre inovar, sempre uma posição nova... mas até que isso não era um problema, porque deitados (ou de pé, ou ajoelhados, ou sentados) a gente sempre se entendia.
   E ainda tinha a questão das palavras... e elas nunca me faltaram pra descrever você, pra me relacionar melhor com você; e você era todo na sua, tinha medo de que as palavras pudessem te ferir de forma irreparável. Sei lá, às vezes acho que não era pra ser.

   Louça lavada, hora de passar um pano nos móveis, mesmo que ninguém vá aparecer. "Todo término também é um recomeço". Lembro de ter lido em algum lugar; parece frase de caminhão, mas o importante é que serve neste momento.
   Não lembro de nenhuma briga nossa, em todo esse tempo de convivência; e acho que pode ser nisso que erramos. Brigas dão margem a separações e a uma melhor compreensão das coisas. Se nunca brigamos, pode ser que nunca tenhamos realmente compreendido um o lado do outro.
   O cigarro finalmente se apagou, e eu nem lembrei de tragar, Acho que acendi mesmo apenas pelo barulhinho. Um rastro de cinzas e uma guimba solitária no cinzeiro me fazem procurar os restos dos seus cigarros. Percebo que nisso eu fiquei mais parecido com você; mesmo que não seja uma coisa muito saudável, sempre que eu fumava me sentia mais perto de você, assim como nas poucas vezes que você vinha dormir aqui e queria dormir com aquela minha camisa azul.
   Os lençóis ainda estão em desalinho; um dos pés do seu chinelo favorito embaixo do criado mudo; é o tipo de coisa que dói ver, dói lembrar, mas ao mesmo tempo é uma dor necessária; é o que vai fazer eu tirar você daqui de dentro do meu peito.
   Talvez mais tarde eu consiga arrumar a cama, mas por agora, eu volto pra cozinha, sento na mesa e pego o cigarro novamente. O estalo me faz pensar na primeira vez que fumamos juntos, naquele motel barato que decidimos passar a noite. Acho que estou pensando demais em você, agora que você me deixou, mas não posso evitar, minha maldição é pensar demais, é sempre ficar pra trás enquanto os outros decidem novos rumos pras suas vidas. Eu permaneço aqui, sentado e pensando.
   Mas não tem problema; já me acostumei; e eu tenho todo o tempo do mundo pra pensar em você, em mim, em nós, e o que será do "eu", agora que você não está mais aqui.

   E quando me dou conta novamente, não tenho mais que pensar no "nós" que existiu, porque existiu apenas pra mim.

domingo, 24 de junho de 2012

Travesseiro

Gosto de dormir com o celular debaixo do travesseiro; minha mão segurando firme no aparelho, apesar de eu saber que ele não vai tocar.
Minha cama é de solteiro, mas é bem espaçosa. Por algum motivo que foge à minha compreensão, eu só durmo encolhidinho no canto da parede, com os olhos fixos na porta, por mais que eu saiba que ela não vai abrir.

Eu consigo ver o mostrador do relógio sobre o móvel, com ponteiros se movendo devagar sobre o fundo colorido, mexo os pés pra encontrar uma posição mais confortável, que eu sei que não virá. Giro pro outro lado e encaro a parede azul do quarto, como um murro direto no meu estômago, a me encher de lembranças.

E então eu percebo que às vezes, rir é a melhor coisa a fazer quando a outra opção é ficar triste.

Infelizmente, acho que eu perdi essa habilidade. Ficar sério parece minha escolha mais segura.


E de vez em quando eu me lembro de vezes como a noite passada, em que chorei até dormir, porque a opção era fugir, ir embora.

Nem sempre o desenrolar dos nossos planos depende exclusivamente de nós, mas quase sempre é nosso o poder de fazer o outro se sentir importante.

Eu viro a cabeça de novo. O ponteiro grande acaba de se mexer.

O travesseiro está molhado, e eu percebo que não foi a noite passada, foi há poucos minutos.

E eu não tentei ser corajoso; a minha vinda pra cá foi a minha escolha mais segura, o conforto desse travesseiro, ao invés do conforto que nunca virá, já que certas palavras nunca serão ditas.

Quando eu sinto que perco todas as esperanças, sinto o telefone vibrando na minha mão. Sem que eu tivesse percebido, já amanheceu, e é hora de a vida continuar.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Abandono

   Na primeira noite, ela sentiu o frio do aço afiado contra sua garganta, enquanto os dois homens sujos arfavam e babavam por sobre o seu corpo. Ela se sentia violada, enojada, e tão logo acabaram, cuspiram sobre seu corpo caído por entre as folhas e partiram em gargalhadas.
   Ela juntou os farrapos e se encolheu de encontro a uma árvore, as folhas secas sob seus pés descalços, e descobriu que não tinha mais lágrimas pra derramar. Sentia o rosto queimando, de onde o murro a acertara. Provavelmente ficaria uma marca, mas ela não tinha que se preocupar com isso. Não tinha ninguém que olhasse por ela, não tinha quem se preocupasse com ela.
   Num esforço sobre-humano ela se ergueu, abraçou a grande árvore naquela noite quase sem estrelas, e um pé depois do outro começou a subir, devagar. Ela procurou abrigo entre os galhos mais altos que conseguia alcançar. Alguns pássaros adormecidos se assustaram, mas ela os tranquilizou com o olhar, aninhou-se num nó dos galhos e adormeceu, pendurada, protegida pelas folhas.

   O dia seguinte passou muito rápido, ela tinha aprendido como catar os restos das lixeiras grandes, perto do parque das crianças, antes que os outros habitantes do parque viessem. Desde que ela não fosse vista, estava tudo bem; nenhuma criança ia gritar, nenhuma babá ia atirar coisas contra ela.
   Nas tardes de sol ela costumava olhar os jornais velhos, esquecido sobre os bancos de madeira. Ela não sabia ler, nem reconhecer as letras. Não entendia nada sobre os números da bolsa de valores que estampavam as manchetes. Ela olhava as fotos mais diversas. Algumas eram coloridas. Mostravam pessoas sorrindo, algumas pessoas tristes. Havia também quadrinhos, que ela não entendia, mas via desenhos; e às vezes até tentava reproduzí-los na caixa de areia.
   Quando não havia sol, e o parque estava deserto, ela molhava os pés no córrego perto dos brinquedos, e sentava devagar nos balanços e ficava se sacudindo. Às vezes esticava a mão bem alto como se pudesse alcançar o céu, como se aquelas nuvens lá longe pudessem vir buscá-la.
   Mas quando começava a anoitecer, ela se empoleirava de novo, os olhos brilhando na escuridão verde das folhas das árvores.

   Quando chovia, ela coletava as penas caídas dos pássaros e enchia seus bolsos surrados. Havia penas de todas as cores, e era como se cada uma tivesse uma história, cada uma delas era um tesouro secreto que não fazia sentido pra mais ninguém, mas enquanto estivessem em seus bolsos, ela se sentia rica, se sentia feliz.

   Era uma tarde de domingo, bem cinzenta por sinal, e ela estava sentada num banco, olhando suas penas recém adquiridas, quando um outro morador do parque sentou perto dela. Ela se encolheu por instinto, preparada pra correr. Ele não fez nada senão colocar no banco um punhado de penas caídas, e sorriu, com uma boca cheia de pedaços podres de dentes, restos de pão no emaranhado de sua barba.
   Ela sorriu de volta, e devagar estendeu a mão e pegou as penas. Colocou-as todas no bolso e saiu correndo. Isso se tornou constante. Toda semana o velho sem dentes deixava um punhado de penas sobre o banco, mesmo que ela não estivesse lá. Ela passou a juntar alguns restos de comida pra ele, deixava depois de coletar as penas.

   O tempo passou devagar, veio o Outono e o Inverno, com as árvores quase secas. Eles se viam com menos frequência. Um belo dia sem nuvens, ela o estava esperando com alguns restos limpos de sanduíches. Parecia que a criança os tinha jogado fora com a embalagem. Ela sorriu com aqueles olhos vagos e inexpressivos. Já haviam perdido o brilho.
  Ele finalmente juntou coragem e disse um "Obrigado por dividir sua comida", com aquele sorriso desdentado e fétido. Ela estava inocentemente balançando os pés descalços.

"Você não deveria ficar sozinha aqui no parque, é perigoso"
Ela deu de ombros
"Você tem algum problema? Não sabe falar"
Ela se levantou e foi até o balanço, e ficou a balançar. Ele se aproximou novamente.
"Nem sempre eu fui assim. Eu tinha um emprego, tinha minha esposa e filho, e ela me abandonou por outro homem. Eu comecei a beber, perdi o que tinha, e sei que nunca mais vou ter alguma coisa na vida de novo. Qual é a sua história?"

Ela desceu do balanço e ficou de frente pra ele, o sol já estava se pondo atrás dela, com um brilho alaranjado. Ela abriu a boca num fio de voz. Era bem baixo, tímido, mas ao mesmo tempo inesquecível.

"Eu sempre estive aqui. Sempre estive esperando por alguém que me buscasse, alguém que me mostrasse que as pessoas valem à pena, e a única coisa que eu recebi foram os restos, os socos e pisões das pessoas. Recebi o cuspe delas no rosto, os gritos e as coisas que me atiravam. Recebi a violência delas e tive que aprender a conviver. Quando eu vim pra cá, eu achei que era capaz de fazer a diferença. Queria fazer algo importante, queria fazer algo melhor. Mas infelizmente, acho que vocês não estavam prontos pra isso"
Ele estava assustado. Achou que ela tinha algum problema mental. Pobrezinha. Tão bonita e louca.
"Não precisa entender. A maior parte das pessoas nunca entendeu. Eu sou um pequeno milagre, assim, do jeito que sou. Um milagre que nunca teve a chance de acontecer, e agora que o inverno chegou e meu tempo acabou, eu vou embora, vou voltar pro lugar de onde eu vim, vou voltar pra onde os dias são tranquilos e cheios de sorrisos sinceros. Obrigado por ter falado comigo, por ter compartilhado essas penas comigo. Pra maior parte das pessoas é lixo, mas são meu pequeno tesouro".

   E com isso, ela desapareceu num piscar de olhos do homem. Ele coçou os olhos várias vezes tentando acreditar, perguntou-se se tinha bebido, mas não. No lugar onde a menina de olhos tristes estava, um punhadinho de penas foscas, sem brilho, um pequeno milagre que tinha existido, e tinha acabado, sumido, desaparecido.
    Um pequeno milagre entre os homens, e ninguém se deu conta.



terça-feira, 1 de maio de 2012

Lágrimas e Chuva...

Hoje acordei com essa música do Kid Abelha na cabeça.

Não existe um motivo plausível ou lógico pra isso, às vezes a gente simplesmente acorda pensando em algo, e tem dificuldades de tirar isso da linha racional.

E ao ouvir, e finalmente matar a vontade (apesar de saber de cor a letra), é que veio aquele peso ao coração, aquela tristeza aparentemente inexplicável.

Sou pequeno, sou imperfeito.
Estou fazendo meu máximo, mas parece que às vezes não é o suficiente.
Queria mais sorrisos nos rostos das pessoas, pra que eu tivesse um motivo para sorrir por mim mesmo.


Solidão é quando você diz pros outros, quando você esconde no fundo da sua alma, acaba se convencendo de que o nome é "melancolia", uma sensação nobre dos poetas de antigamente.

Mas é realmente isso que queremos sentir?

São perguntas demais, pra pessoas pequenas diante da imensidão, de um mar de dúvidas e incertezas.

Pode ser que eu esteja assim também porque lembrei de você, de tudo (o pouco) que vivemos, e sei que por mais que eu deseje, nunca terei essas sensações novamente.

Chega a um ponto na vida em que estar sozinho deixa de ser ilógico, e passa a ser a única solução; sobretudo quando você tem uma multidão de pessoas a quem ama e que deseja cuidar, que prometeu cuidar.





Meu professor uma vez me perguntou "E quem cuida de você, se você passa tanto tempo cuidando dos outros?" E eu respondi: "Ninguém, a gente esconde o que sente pra não preocupar os outros, toma as dores deles pra si até que eles estejam felizes, e da felicidade deles juntamos forças pra seguir adiante"

Talvez seja a resposta mais inocente, e ainda assim, a melhor delas acerca do que é a vida: Fazer os outros felizes.

domingo, 4 de março de 2012

Adoro gordinhos... e gordinhas

Adoro gordinhos

E as gordinhas também, claro; mas os gordinhos sempre chamaram mais a minha atenção. Como diz minha amiga Samara: “eu tenho uma bordinha de catupiry irresistível”, e não tem como discordar.
Não tinha nada melhor quando eu tava namorando do que dormir abraçadinho, quentinho, com uma pessoa com aquela gordurinha extra levemente palpável, e falar “tudo meu ó, tudo meu”
Num mundo em que a ditadura da academia e da dieta fazem a cabeça das pessoas, é cada vez mais raro encontrar alguém que goste do próprio corpo da forma que é, mas os mestres d orgulho corporal são os gordinhos, que não fazem olhar de culpa quando comem um sanduíche de 30 cm no Subway, ou falam “vamos pro Rodízio?”
Gordinhos também se orgulham dos pelos que têm, em geral, e não ficam com a paranóia de “Estou peludo? Vou fazer depilação semana que vem”
Gordinhos sorriem como criança quando você lembra deles e traz um chocolate, uma fatia de torta, ou coisas mais simples ainda, um sorriso de saudade enquanto o abraçam apertado. E eles sempre vão dizer “Ahn, tô gordo”, mas quem se importa? Gostamos deles exatamente assim, com o excesso de gostosura.
Pra quem gosta de magrinhos ou magrinhas, compreendo, respeito e aceito, mas na minha cabeça sempre vira a lembrança agradável de dormir abraçadinho, quentinho e confortável, quase que abraçando um panda.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Quebrado...



Sou quebrado, das mais diversas e impensáveis formas...

Choro ao anoitecer, na dúvida de que existirá um amanhã melhor que o hoje, e na esperança de ser capaz de fazer a diferença
Choro de solidão, por ser incapaz de criar pontos que sejam capazes de ir até o coração de alguém.
Sou um romântico à moda antiga, incurável, daqueles que já nasce velho, já nasce apaixonado pelo viver, pelo perfume das rosas vermelhas acompanhadas de caixas de chocolate, mesmo que hoje em dia as rosas estejam murchas.
Sou daqueles que olha ocasionalmente o telefone esperando ver uma mensagem dizendo que alguém sente minha falta, ou imaginando que ele vai tocar e alguém vai dizer "pensei em você", e isso nunca acontece.
Sou daqueles que sonha com situações impossíveis, escrevo no caderno, imagino como seriam as fotos, as conversas, imagino cada detalhe, apenas pra apagar depois, porque sei que nunca vão acontecer.
Acordo muito cedo às vezes, mas fico com preguiça de levantar da cama porque sei o que me espera.
E o médico pode até dizer que é depressão, mas o que ele sabe MESMO sobre depressão? O que ele sabe sobre mim?
E quando eu tento conversar com alguém, alguém a quem considero um colega, percebo que ele está muito imerso em seu próprio mundo pra que eu possa contar do meu. Posso culpá-lo? Claro que não, eu que seja capaz de lidar com todas as nuances da minha vida.
Às vezes eu me reviro na cama, tentando olhar as estrelas, e esqueço que do lado de fora da minha janela tem uma árvore cujas folhas impedem a visualização do céu.
E o meu gato que fica ronronando quando eu passo a mão no pescoço dele, é o primeiro a fugir quando abro a porta da cozinha
Talvez, nesse mundo mutável, eu tenha permanecido o mesmo por tempo demais, e esqueci como mudar.
Talvez eu não precise mudar, porque já me aceitei como sou
Talvez, só talvez eu definitivamente esteja quebrado, como os brinquedos esquecidos no fundo das grandes lojas, eternamente esperando pra que alguém me leve até o caixa.
Mas quem pagaria por um brinquedo quebrado, quando pode ter um inteiro?

Talvez estejamos todos quebrados, esperando alguém que nos conserte; perdidos numa sociedade que diz que devemos ser jogados fora e substituídos por um novo.

Talvez... só talvez.... um universo de "talvez" que sufoca e arranca cada palavra não-dita, cada palavra que se tenta escrever


E aí, o plástico da embalagem não deixa mais passar ar, a luz nem se acende mais.

E quando muda o mês, somos levados pro fundo de um depósito e esquecidos.