sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Apresentação

Pois é, me apresentar AGORA, com três contos já postados?

É, tem apresentação agora.

Bom, meu nome é Tarso, eu tenho 24 anos (idade crítica -rsrsrsrsrs-), moro no Rio de Janeiro, sou formado em Letras: Português-Inglês pela UFRJ e faço Especialização em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ.

Esse blog é meu templo secreto, onde eu posso esquecer um pouco do meu dia, do trabalho, das minhas frustrações, e dar vazão a coisa que eu mais amo no mundo...escrever.

Sem nenhum tema específico...sentar e escrever apenas, sobre quaisquer coisas que me venham à mente, sem me preocupar se alguém vai ler, ou se vai gostar, ou se vai ser significativo.

Então eu sento, coloco uma música pra tocar, e deixo a imaginação agir.

Cada conto aqui é único, postado assim que eu finalizo, sem nenhum leitor teste...mas claro que eu tenho meus favoritos pra lerem, que são a Carol, a Samara, o Fábio e o Lenon, que são excelentes amigos e que me ajudam muito, dizendo a opinião sincera deles.

Então, eu espero que vocês aproveitem a leitura, e que cada conto aqui postado sirva como uma reflexão pra efemeridade da vida,pra pensarmos o quão breve é nossa existência, e o que fazemos por nós mesmos.

Um grande beijo, um enorme abraço, e sinceros votos que retornem mais vezes, e caso se sintam à vontade, deixem um comentário.

Muito obrigado por tudo

03

Há muitos anos eu não entrava nesse lugar. A entrada parece completamente diferente, os letreiros... claro, a cidade cresceu, e bastante, parece certo que as coisas da cidade também cresçam... mas as pessoas são completamente diferentes, as roupas, os olhares... é tudo tão imediatista, tão repentino...


Eu pago o táxi e entro pela porta dupla; pago a entrada e já me encaminho ao bar... acho que velhos hábitos nunca morrem, apenas ficam adormecidos ali no canto, hibernando em silêncio... a maior parte das pessoas bebe essas cervejas estranhas, pra mim todas elas têm gosto de mijo, sempre tiveram, mas nos meus tempos de adolescente era legal sentar na esquina de noite com a galera e comprar das mais baratas, no posto do outro bloco e a gente bebia e falava merda a noite toda, só pra preocupar nossos pais.


As batidas da música me alcançam no mesmo instante em que o gelo do copo toca os meus lábios... não é de todo ruim, mas ainda assim, ambos diferentes... a bebida é aceitável, a música é tolerável. Não sei como agir nessas horas. O fluxo de pessoas vai em direção à uma escada pro segundo andar, e eu sigo, de forma quase involuntária. Lasers verdes pontuam o teto, numa constelação imaginária.


Claro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-branco-escuro-claro-escuro-claro-escuro-buzina-escuro-claro-escuro-claro-escuro


Demora, mas meus olhos se acostumam com a variação luminosa. O espaço é maior do que parece, com algumas plataformas onde homens sem camisa dançam. Muitas mulheres dançando, despreocupadas, algumas se tocam, se beijam, alguns homens olham, não com desejo, como eu estou acostumado a ver. Alguns homens trocam olhares, outros, carícias. Bancos estrategicamente posicionados servem como repouso pros cansados de dançar, e como refúgio praqueles que buscam os braços do parceiro da noite.


Os corpos se movem sem ritmo, a batida parece contagiar. Uma ou outra vez eu percebo alguma letra, algum remix? Não é importante saber, não faz nenhuma diferença nesta noite, não faz diferença em noite nenhuma.


Escuro-claro-escuro-claro-escuro-globo espelhado-espelhos nas paredes


É, o meu reflexo. Os fios brancos parecem se destacar, por mais que ninguém mais perceba, não se pode mentir a idade pra nós mesmos, e olhando ao meu redor, nem de longe eu sou velho neste ambiente. Achei que seria diferente, que seria considerado um “tiozão”


Eu procuro um lugar mais agradável, onde eu possa ver tudo, onde eu não perturbe, e nem vá ser perturbado, de preferência perto do bar. Passando por trás da cabine do DJ dois lances de escada, um subindo e um descendo, grandes chances de serem outros ambientes, os quais eu ainda não quero conhecer.


A música começa a fazer efeito, primeiro você mexe os pés devagar, improvisando uma batida, o pescoço lentamente começa a se mover, e em seguida as mãos, segurando-se firmes, por vezes enfiadas nos bolsos, até que você se rende e começa a se mexer no mesmo compasso que as outras pessoas, cada uma no seu estilo, cada uma do seu jeito, um ritual coletivo, e ainda assim individualista, os olhos fechados, os lábios murmurando alguma prece estranha numa língua ininteligível.


É vibrante, contagiante, incompreensível, essa força vital que sobe da pista, o ritmo descontrolado das batidas e das pisadas, dos beijos e segredos trocados ao pé do ouvido, das mãos que procuram, dos corpos que se encontram, eu abro os olhos umas três vezes, motivado pelo barulho não-harmônico e pela impressão de proximidade, nas três vezes eu sorrio, algumas frases são trocadas, eu sorrio de novo enquanto balanço a cabeça, negativamente. Um aperto de mão, um tapinha nas costas e um agarrão na cintura, as três reações, em ordem, ao que eu respondo com uma nova negativa. Não é nada com eles, é comigo.


Incrível como nós só pensamos na vida a partir da possibilidade da perda. Três longos anos já se passaram, mas eu ainda lembro de cada detalhe, cada imagem, e a dor nunca diminui, sempre fica aquela marca indelével, você acorda, trabalha, conversa, passeia, dorme, e continua lá, do mesmo jeito, o máximo que acontece é que fingimos pra nós mesmos que superamos.


Escuro-claro-escuro-claro-escuro-lasers verdes-jogo de luzes-muda o DJ-claro-escuro-claro-escuro


A sirene toca de novo, o ritmo das músicas muda, muitas pessoas vão pra trás da cabine do DJ, em direção às escadas, e eu não tinha percebido o quão grande era o lugar, e o quanto de público ele atrai, visto que mesmo com muitas pessoas subindo, ainda passa a impressão de lotado, ou pode ser que realmente esteja lotado.


Hora de ir ao banheiro, apenas uma porta -banheiro coletivo- eu dou de ombros e vou em direção ao mictório. O cara do meu lado me dá uma olhada e passa a língua nos lábios. Sei bem o que ele quer, não é a minha. A mão dele me procura, a minha mão a interrompe, enquanto eu me dirijo pra lavar as mãos. Ecos do passado, um passado bem distante, mas não esquecido.


Eu tinha vinte e dois quando a gente se conheceu, e vinte e seis quando demos o primeiro beijo. Trinta quando resolvemos juntar as coisas e dividir um apartamento minúsculo. Com trinta e cinco o Destino achou engraçado jogar um carro contra o nosso. Setenta e cinco pontos, dois parafusos no braço, uma fratura exposta na perna, meses de fisioterapia, e uma vida de solteiro num apartamento de casal.


Tem dias em que é mais difícil lidar com a perda, tem dias que é menos difícil, mas nunca fica mais fácil.

A música que eu conhecia acabou e eu nem percebi, estava perdido demais nos meus próprios pensamentos de solidão.


Escuro-claro-escuro-claro-escuro-lasers verdes-escada - pé ante pé – subindo-escuro-claro-escuro-claro-escuro


O andar acima tem música pop, nada de remixes, as paredes não são espelhadas. A cabine do DJ é num canto, perto de janelões fechados, ar condicionado a toda. As pessoas parecem diferentes, os lasers deste andar são vermelhos, me dão a freqüente impressão de estar sob mira de alguma arma.


As luzes são mais fracas, os abraços mais apertados, os beijos mais longos e as carícias mais íntimas. O álcool também aumenta em concentração, pelo menos pra mim, e mais duas vezes eu ouço sussurros ao meu ouvido. O primeiro é encarado com surpresa, e uma recusa, o segundo conquista a minha mão na cintura, o abrir dos lábios, o contato com a língua dele, devagar, melodiosa, as coxas dele contra as minhas. Há muito tempo não tinha nada assim.


Sentamos no sofá, palavras doces são trocadas ao pé do ouvido, seguida de mordicadas de leve no queixo, no lóbulo da orelha, as mãos dele procuram os botões da minha blusa, a minha mão procura a barriga dele, pêlos aparados, nenhum tanquinho, felizmente. Parece que a febre do verão, em prol de um abdome de tanquinho ainda não alcançou a todos os lugares, felizmente. O cavanhaque dele no meu pescoço, a respiração dele eriçando os pêlos da minha nuca, mais beijos, mais mãos, menos botões.


Claro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-branco-escuro-claro-escuro-claro-escuro-buzina-escuro-claro-escuro-claro-escuro


Ele segura minha mão, eu sei o que ele quer, eu vou até o guarda-volumes e deixo carteira, celular, chave de casa, e guardo o canhoto que me entregam no sapato; ele ainda me espera, sorrindo –é um sorriso?- Ele me pega pela mão e me beija. É, não tem nada na boca dele. Não seria a primeira vez que tentam me passar alguma coisa durante um beijo. Ele desce o primeiro lance de escadas, eu desço atrás, ele ri –desta vez foi uma risada!- e desce o segundo, eu respiro fundo e desço junto.


Escuro-escuro-escuro-mãos-calça-peito-escuro-mão-vultos-rostos-mãos-tropeços-corpos-pés-escuro-escuro-escuro-olhos fechados-gemidos-sussurros-escuro-escuro-cheiros-toques-contato-escuro


A mão dele segura a minha e me coloca contra a parede, meus olhos já começam a se acostumar, a distinguir os vultos se entregando totalmente, uns aos outros, ninguém pertence a ninguém nessa liberação sexual, nessa confusão de mãos e corpos. As mãos dele passam pela fivela do meu cinto e abrem meu zíper, e eu sinto os lábios dele descendo pelo meu peito enquanto ele parece se ajoelhar. O casal ao lado faz o mesmo, e o homem em pé, o loiro –parece loiro, será realmente?- inclina a cabeça pra mim, pedindo um beijo, que eu de bom grado concedo. Mãos me tocam, eu sinto os lábios da minha dupla em mim, minhas mãos procuram outra pessoa, numa confusão total, onde eu estou além dos limites do meu próprio corpo, onde os limites não são importantes, e a indefinição é a única coisa que nos une.


Escuro-escuro-escuro-lábios-pênis-peito-escuro-mão-nádegas-mamilos-mãos-borracha-costas-inclinar-escuro-escuro-escuro-olhos fechados-força-empurrar-gemidos-sussurros-escuro-escuro-beijos-mordidas-reentradas-escuro-escuro


Eu suo, eu sinto o suor de outros em mim, eu sinto os quadris da minha dupla me pressionando contra a parede, as mãos dos outros sobre mim, me tocando, me explorando, e com um gemido meu, um beijo da minha dupla, a borracha é jogada no chão, ele se veste e sobe, enquanto eu continuo, sem saber os meus próprios limites.


Outras mãos, outros lábios sobre mim, em todos os lados, por todos os ângulos, eu sinto as pessoas às minhas costas, o casal do meu lado se separou, o loiro à minha frente, apoiado em algo, reclinado pra frente, me convidando pra possuí-lo, enquanto o parceiro dele, cujo rosto eu sequer vi, pede pra que eu me incline. Pele na pele, sem borracha, meu corpo involuntariamente reclama, ao mesmo tempo em que o loiro reclama da invasão, a pele, o cheiro, o suor, o contato, os movimentos, a escuridão, somos todos um aqui, sem limites do ser ou do existir.


Escuro-escuro-escuro-lábios-pênis-peito-escuro-mão-nádegas-mamilos-mãos-borracha-costas-inclinar-escuro-escuro-escuro-olhos fechados-força-empurrar-gemidos-sussurros-escuro-escuro-beijos-mordidas-reentradas-escuro-escuro-gozo


Eu termino de me vestir enquanto mãos alienígenas ainda percorrem o meu corpo, estou cansado, dolorido, sujo até, tenho essa certeza, mas nada disso é importante, nada mais importa.


Eu subo as escadas devagar, e um mundo inteiro de claridade se revela pra mim; não sei quanto tempo eu fiquei naquela sala repleta de escuridão, mas sei que eu quero ir pra casa. Eu vou ao guarda-volumes e pego o que é meu, e sigo em direção ao caixa, pago minha comanda e sinalizo pro táxi. Dou o endereço. Um olhar reprovador, mas eu já encarei tantos outros, muito piores na verdade. Dos meus pais, dos meus ‘amigos’, da minha ‘namorada’, não vai ser esse taxista que vai me intimidar.


E no banco de trás do carro, enquanto o mundo se ilumina, eu penso em tudo o que já foi tirado de mim, em todas as juras e promessas e sonhos de um dia viajar pra fora do país, ou adotar uma criança, ou mesmo sossegar um tempo no Nordeste, e como tudo isso foi arrancado de mim por um motorista voltando de uma balada, exatamente como eu faço agora.


É uma sensação de vazio tão grande, tão opressiva, mas eu já me condicionei a não chorar, eu sei que desde aquele momento, há três anos, meu destino era permanecer sozinho. Ele foi o único que entendeu e aceitou a minha condição, e estar com ele era mágico, e único, e ninguém tem culpa por isso, e ao mesmo tempo todo mundo tem culpa da minha condição. Irresponsabilidade minha, em tempos de juventude, loucuras de uma noite que a gente vem a se arrepender depois.


Eu não me arrependo mais; eu sou amargo, sou ressentido, sou hipócrita, eu sorrio quando vejo que não tem borracha. Do jeito que me tiraram o sentido da vida, eu condeno cada um deles a uma existência tão torturada quanto a minha. Sou torpe, sou vil, sou tão humano quanto qualquer um deles. Não escolhi minha condição, mas eu não recuso, nem rejeito ser como sou. E é assim, um dia depois do outro, até que uma infecção me leve.

Eu chego em casa, pago a corrida e subo, esperando por mim, dois gatos, e um coquetel, que tem sido meu fiel companheiro na imensidão desse apartamento minúsculo onde eu projetei minhas esperanças.


Esperanças como um castelo de cartas, que perdeu sua base três anos atrás, e agora, eu não ligo, tudo pode ir pra casa do caralho, pq eu sei exatamente que a doença e a morte me esperam.


segunda-feira, 12 de outubro de 2009

02

A torradeira apita e ejeta duas fatias de pão perfeitamente douradas, sem casca. Os ovos mexidos no canto direito do prato, as três tiras de bacon alinhadas no canto esquerdo. Guardanapo de algodão branco, impecável, cobrindo os talheres prateados. O copo de suco de laranja, apenas duas colheres pequenas de açúcar, coado e sem espuma, do jeito que ele gosta.


Eu ouço os passos dele na escada e me apresso em colocar o jornal em posição, minhas mãos no avental, um sorriso no rosto enquanto ele desce, já arrumado, o cheiro de loção pós-barba no ar. Ele pega o jornal sobre a mesa e o folheia enquanto come apressadamente. Eu separo o paletó para ele enquanto ele escova os dentes, e ele deixa "dinheiro" sobre a mesa, ao lado do prato, como se eu fosse uma garçonete qualquer, e sai, balançando as chaves do carro, mas não sem antes esperar que eu abra a porta.


Eu observo da varanda até que o carro cruze a esquina, assim como as outras esposas o fazem. Todas nós, com nossos aventais impecáveis, nossos cabelos presos e uma bela aliança que brilha ao sol que acabou de nascer, cada uma com seu orgulho pela bela casa, os belos jardins que cultivamos, sem nenhuma erva daninha. Nossos arbustos perfeitamente cortados, simétricos.


Mais meia hora exatamente até que a doméstica chegue nesta manhã de segunda-feira; usamos apenas o termo doméstica, não mais empregada, como nos tempos da minha avó. É tarefa delas lavar os banheiros, encerar os pisos, tarefas indignas de uma mulher casada. Porque nenhuma delas tem marido, pobres coitadas; a maior parte tem um amante, ou é “amigada” com alguém, longe da vida estável que o casamento proporciona. Elas chegam num ônibus verde, cada qual pra uma casa, rapidamente, pela porta dos fundos.


A lista de tarefas está pronta sobre o balcão, eu confiro mentalmente as necessidades da casa e comparo com minha lista, tudo confere, pego a cesta de vime, tão bem trançada e detalhada, uniforme entre nós que iremos ao mercado, e me dirijo à porta, parando apenas para pegar o chapéu e as luvas. Não é de bom gosto que senhoras casadas apresentem-se de qualquer maneira na frente dos outros, foi a primeira lição de minha mãe quanto à minha vida de casada.


Na soleira da porta vejo minhas vizinhas se preparando para a mesma empreitada. Um aceno de cabeça apenas por educação, pra mostrar que reconheço a existência dessas outras mulheres cuja felicidade se rivaliza à minha. Elas respondem, com um sorriso, e meus pés se movem, um após o outro ao longo da calçada, em direção aos mercados. É um lindo dia de sol, mas sem estar abafado.


Nossa pacífica vizinhança é como uma ilha de tranqüilidade, é só andar alguns blocos para que o cenário mude; já é possível ver os carros da guarda, controlando a entrada e saída. Eles cumprimentam a todos nós do mesmo modo, formal e impessoal, nada seria melhor.


Aqui as casas são menores; as pessoas, piores. Naquela casa de esquina mora Tânia e sua amante. Quão repulsivo me é o pensamento de uma mulher entregando-se a outra, uma afronta aos olhos de Deus e dos homens. Qual a lógica ou razão disso? Onde está o sagrado fim reprodutivo que Deus nos confiou? Mulheres baixas, repugnantes... deveriam ser mandadas pra longe, junto com os sem-teto, os mendigos... mas somos obrigadas a conviver com esse câncer entre nós.


No outro bloco fica uma lavanderia. Todas as esposas sabem realmente o que acontece dentro daquelas paredes; apenas homens são vistos entrando, geralmente no período da tarde e da noite; aquelas asiáticas, com seus olhos puxados e seus feitiços do oriente, seus risos miúdos e pele amarelada, macilenta, nenhuma delas sabe o prazer de se dedicar a apenas um homem, que te satisfaz em todos os aspectos. Putas, piranhas, degeneradas! Posando de trabalhadoras honestas! Uma delas acabou de sair pra pendurar a placa de “estamos abertas”. Claro que estão! Mulheres repulsivas! Envergonha-me ter que dizer que são mulheres... são fêmeas, como os animais! Ela acena com a cabeça, eu e algumas outras viramos o rosto; elas têm que saber que não são parte, e que nunca serão.


Finalmente o mercado! Mas ainda não o nosso. As primeiras lojas são pras largadas, viúvas, todas as infelizes inferiores. Suas roupas justas, maquiagem nos rostos, usando o exterior pra seduzir e disfarçar seus interiores de serpentes; criaturas falsas, enganadoras! É sempre tão repulsivo ter que andar por entre elas, como água e óleo, não nos misturamos, ficamos sempre em evidência quando confrontadas com elas, seus lábios vermelhos, olhos pintados de preto, ainda que seja de manhã, as bijuterias de plástico nas orelhas, no pescoço, os anéis de metal vagabundo...


Quase com uma pressa que não me é característica eu entro na loja, entrego o papel com as anotações ao dono, um homenzinho gordo e ensebado, quase careca, com seus quarenta e poucos anos. Ele grita pro ajudante, um mocinho com seus dezoito, ou quase isso, cabelos pretos, uma rede sobre eles, já que está mexendo com comida; ele pede a minha cesta, que eu entrego, e ele coloca rapidamente os produtos nela. Hora do "dinheiro"; eu passo meu cartão na máquina. Há muito tempo não usamos mais dinheiro de papel; a transação é consumada, e eu volto pra casa enquanto as outras esposas são atendidas.


O caminho de volta é sempre mais apressado, o sol já se levantou por completo, pequenas ondas de vapor sobem do asfalto, e nós, esposas, andamos apressadas pelas calçadas, acenando delicadamente umas para as outras com quem ainda não falamos. O trajeto é intenso, e revoltante, as largadas, as viúvas, as putas, as pervertidas, todas estão ali, olhando, uma mistura de inveja e ódio estampada nos seus olhares.


Fecho a porta de casa, afoita, deixo a cesta sobre o balcão da cozinha; a doméstica está ocupada. Rapidamente eu subo os lances de escada e me tranco na segurança do meu quarto. Abandono o chapéu e as luvas sobre a cama de casal, com os lençóis brancos, o dossel de renda... nunca me faltou nada aqui, mesmo nas noites em que meu esposo mal me toca, mas é a felicidade que eu posso querer, a respiração dele no meu pescoço, pequenos olhares de cumplicidade à hora da refeição, quem se importa com a “felicidade” que essas mulheres da rua têm?


Um a um, os botões saem de suas casas, e o vestido é abandonado no chão do quarto, o som da água gorgoleja em meus ouvidos, preenchendo a banheira, primeiro um pé, depois o outro, ajoelhando-me devagar na água quente, o cabelo preso em um coque rapidamente se desfaz, caindo pelas costas, grudando na pele.


Eu estico as pernas, olho pra água, meus seios não são mais tão bonitos como quando me casei, a pele continua pálida e suave, mas sinto como se alguma chama tivesse se apagado. De forma inconsciente, minha mão desce até a minha cintura, e eu percebo que a única coisa que me envolve desta forma é a minha roupa. Há muito meu esposo não me toca desta forma. Minhas coxas continuam torneadas, e entre minhas pernas, continuo a mesma, com quase tanta experiência como quando ainda era uma virgem.


As mãos se movem mais uma vez. A porta está trancada, ninguém precisa saber, ninguém vai me condenar pelo meu prazer solitário, desde que nenhum som escape deste cômodo; é meu maior segredo. Aqui eu sou Tânia, se contorcendo de prazer enquanto as mãos de sua amante exploram seu corpo, sou cada uma daquelas putas da lavanderia, com línguas explorando cada cavidade, me colocando em poses vergonhosas pra cada um de meus machos, e o dono da venda, e seu ajudante, os dois me tomando por suas, ao mesmo tempo, segurando-me pelas ancas, puxando meus cabelos, mordendo meus seios até deixarem marcas, e tudo isso aos olhos do meu esposo.


Mas ninguém precisa saber, e quando eu abrir o ralo, essas fantasias proibidas também irão escorrer, até o próximo banho.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Conto 01

A escuridão. É quase palpável pra mim em noites como essa. Sempre foi.


Dói.


Eu sinto cada movimento dele; a respiração dele ecoa nas paredes desse quarto morto.


Eu abro os olhos devagar, as luzes estão apagadas, a janela e a cortina fechadas também, um mínimo de luz que me permite distinguir a porta que leva ao banheiro, sem maçaneta, num canto do quarto, um baú fechado, com algumas peças de roupa.


Faz calor, e eu sinto o suor na minha testa, e o arfar continua, a dor continua, assim eu sei que minha existência continua. Tem sido assim por muito tempo... desde que consigo lembrar.


O barulho se intensifica, a dor aumenta, o movimento fica mais rápido e de repente tudo pára. E então mais barulho... o tecido se movimentando contra a pele, os botões contra os dedos.


Ele fala alguma coisa. Um insulto como sempre, e eu tapo os ouvidos e finjo que não ouvi; e sinto o braço dele me puxando pra fora, me jogando no chão. O soluçar de medo já morreu há muito tempo, quaisquer reações já me foram arrancadas. O som dos meus joelhos contra o piso do quarto, e eu sei o que ele quer, ele me obriga a pedir perdão pelo que eu fiz; é minha culpa, sempre é minha culpa, apesar de ele sempre voltar.


Eu sempre rezo pedindo pra que ele não volte, mas essas preces nunca são atendidas. Não rezo apenas quando ele manda. Rezo ao acordar, ao comer, a cada instante tranqüilo que tenho; se é que pode ser chamado de tranqüilo.


E me dizem pra agradecer a comida, as roupas, tudo o que recebo, enquanto fingem não saber o que se passa todas as noites no quarto pequeno, no final do corredor.


Nos primeiros dias eu chorava, e gritava, até que a mão dele apertou meu pescoço, bateu e bateu mais no meu rosto e eu não consigo me lembrar de mais nada a não ser a dor; Desde então ele me manda ficar em silêncio; afunda minha cabeça no travesseiro. É sempre assim, nessa posição humilhante que ele vem sobre mim, às vezes a mão solta a minha cabeça, porque fica difícil de eu respirar, mas nunca vem o toque, nunca é suave, ou delicado.


A dor no meu rosto faz com que eu lembre que ele ainda está presente, ele ainda quer saber que meus lábios se mexem numa prece silenciosa. Quase de imediato eu sinto o rosto ferver, inchado, foi um tapa? Deve ter sido, não seria o primeiro. Eu apenas cumpro meu papel, em silêncio; e ele vai embora. Um raio de luz da lâmpada do corredor se atreve a entrar no quarto, mas ele logo fecha a porta e me mantém no escuro, esse terror que ainda me assombra a cada dia, que permeia meus pesadelos.


Eu pego as peças de roupa que me foram tiradas e jogadas no chão. Lenta e dolorosamente eu as pego em meus braços e vou na direção da porta sem maçaneta. Já posso ouvir o barulho da água correndo. Ele quer que eu me lave.


Não há janelas no banheiro, nem espelhos, nem nada afiado ou pontiagudo. A banheira se enche lentamente com a água gelada, e num fio ela some. Apenas o bastante para que eu me limpe, ele já disse em outras vezes.

Um pé, depois o outro, ajoelhando devagar, e com as mãos em concha despejando a água sobre o ombro, esfregando devagar. Ainda me faltam forças. Coloco a mão com água gelada sobre o rosto, a sensação de formigar se intensifica. Eu fecho os olhos... a água parece me encher, mesmo tão pouca.


Eu me levanto, me seco com uma toalha que não consigo identificar a cor, me visto novamente e vou até a cama. Dói quando eu apóio os pés. Sempre dói, e nunca vai mudar, sempre me enoja, faz com que eu sinta minha pele suja.


Eu puxo o lençol fino e me enfio debaixo dele. A cama ainda está quente, cheira a suor, a sexo, a pecado. Eu fecho os olhos pra tentar esquecer, mas enquanto estou aqui, só essas memórias me vêm. Essas memórias e culpa, por algo que eu nem mesmo sei o que é, só sei que carrego essa culpa, e que não há forma de escapar dela.


As horas passam, ou assim eu imagino enquanto rolo sem conseguir dormir nesta cama. Tenho que ficar em silêncio ou ele pode voltar, e eu não agüento... não duas vezes na mesma noite... ele já tentou, foi quando ele quebrou meu braço me segurando forte, e urrava, se eu pudesse ver, diria que estava rindo da minha dor.


Pequenos raios de sol começam a invadir a escuridão do quarto, as coisas começam a ganhar cores; tudo é muito sóbrio... bege, marrom, branco... a porta abre e eu sei que é hora de fingir que estou acordando, e ele está lá, parado, com ela por detrás dele. Não é culpa dela, eu sei. E a voz dele cai sobre mim, falsa, hipócrita, cínica.


“Filho, hora de ir pra escola”