sábado, 17 de novembro de 2012

Desejando

Por onde passava via os laços entre as pessoas. Mãos que se tocavam, lábios que se encontravam, olhares esguios que trocavam confidências.

Não com ele. Ele colocava as mãos nos bolsos da jaqueta e olhava para os lados, com a cabeça levemente inclinada pra baixo. O vento frio bagunçava ainda mais a franja desajeitada dele. Todos os amigos já tinham dito que a época já tinha passado; não pra ele. Ele gostava daquilo e não dava trabalho pra pentear.

O clube estava cheio, dava pra saber antes mesmo de chegar, pela quantidade de garrafas vazias abandonadas junto ao meio fio e pelas latinhas entulhadas em volta da lixeira. Uma trilha de pontas de cigarro tornava tudo mais fácil. Ele se lembrou de economizar, já que só tinha meio maço.

Na porta, a fila já virava a esquina. Não que isso fosse problema pra ele. Conhecia os DJS, conhecia o dono da boate; cumprimentou a quem devia e entrou, o nome dele já estava na lista.

As músicas de sempre, várias pessoas conhecidas, de longa data até. Ele foi até o bar e pegou uma cerveja barata; eram as melhores de se beber em boate. Subiu as escadas até o camarote, cumprimentando os seguranças no caminho.

A moça da lojinha veio ao seu encontro com um abraço apertado, um beijo no rosto. Tanto tempo que não se viam. É, ele estava um pouco sumido das baladas porque não via mais tanta graça assim. Ela dizia que entendia, que era coisa da idade mesmo, de procurar novos ares. Namorados ou namoradas? Nah, ninguém. Solteiro na pista e procurando, mas tava difícil.

Ela voltou pro trabalho dela, ele sentou no sofá vermelho e ficou olhando a pista lá embaixo. A interação entre as pessoas era fascinante. Alguns trocavam olhares, outros trocavam toques. Uns poucos pediam pros amigos os apresentarem. Ele se levantou e começou a dançar, desengonçado. Estava se divertindo, ou assim parecia. Alguns meninos subiram no palco e fizeram coreografias, ele riu enquanto tomava mais uma cerveja.

Lá pelo meio da noite ele desceu novamente, passando no meio da multidão. Os reservados do banheiro todos ocupados, dois pares de pernas podiam ser vistos em cada um deles. Não precisava ser vidente pra saber o que estava acontecendo. Ele andou até a parede, no mictório e abriu o zíper, cantarolando enquanto deixava a cerveja sair. Um cara parou do lado dele, começou a fazer o mesmo, dando espiadas de leve. Com um sacudir de cabeça ao mesmo tempo em que abotoava a calça e um pequeno riso tímido, o rapaz saiu sem nem ao menos lavar as mãos. Bem, não tinha papel pra secar mesmo.

As músicas ficavam mais lentas, podia ver os casais abraçados na pista, trocando beijos, alguns trocavam carícias impróprias. As luzes vermelhas e azuis incidiam exatamente sobre ele; e ele se sentia feliz; e ao mesmo tempo incompleto, mas não sabia o que faltava pra ele.

Voltou ao camarote e acendeu outro cigarro e outro depois. Talvez estivesse ficando velho pra este tipo de coisa. Talvez devesse frequentar outros lugares, ver outras pessoas. Talvez devesse desejar coisas diferentes.

Mas naquele momento, ele só conseguia olhar pra pista e ver a quantidade de casais; as pessoas juntas, de mãos dadas, e enquanto na mão dele, um cigarro e ocasionalmente uma cerveja. Talvez aquela não fosse a praia dele mesmo.

Terminou o cigarro, despediu-se de todos antes do final da festa e saiu. Não tinha ninguém esperando por ele. Ia pegar um táxi pra casa, que era mais confortável. A madrugada -que madrugada ? Era quase manhã- continuava fria, e ele fechou a jaqueta. Caminhava devagar em direção ao ponto de táxi perto da esquina.

E foi quanto tudo ficou preto por um instante

Ele ouviu um cantar de pneus, mas não sabia ao certo de onde tinha vindo.

Abriu os olhos pra ver rostos desconhecidos sobre ele. Quem eram aquelas pessoas? O quê estavam fazendo ali?

Foi quando se deu conta de que podia ver o sol. a moça inclinada sobre ele movia os lábios, mas ele não conseguia entender o que ela dizia. Tudo era tão estranho.

A moça continuava inclinada sobre ele. Ela estava chorando? Será que ela tinha olhado na direção do sol? Sem saber por qual motivo, algo dentro dele mudou, e ele podia sentir sua mão se movendo em direção ao rosto dela.

A mão dela encontrou a dele no caminho. Era quente, macia. Ele desejou poder segurar a mão dela por mais tempo.

E fechou os olhos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Diferente

Desde criança sei que não sou como os demais. Algo dentro de mim nunca pareceu certo, e foi bem antes do divórcio dos meus pais. Não adianta jogar a culpa nisso agora, como eu vejo muita gente fazendo: "ahn, é culpa dos meus pais que não me amavam, é culpa do meu pai ter saído de casa, é culpa da minha mãe ter fugido com outro homem". Não é meu caso; sempre fui diferente de todos os outros, mesmo antes de saber o que significava.

Na escola eu tinha notas médias, era mais um rosto na multidão de meninas e meninos. Escola pública, não podia esperar muita qualidade ou exclusividade; andava com ambos grupos e ninguém parecia se importar; podia ser apenas a representação de mim enquanto estava com eles.

Mas nada permanece igual por muito tempo, as coisas sempre mudam, sempre se alteram, e quase sempre de forma desagradável para aqueles que são minoria. A minha diferença começava a gritar pros outros, começava a impedir que as outras pessoas chegassem a mim e vice-versa. Enquanto que pra mim, continuava a mesma pessoa, nos mesmos mínimos detalhes, fazendo as mesmas coisas.

A adolescência chegou, o corpo começou a mudar, e não sei como, mas o meu mudava ainda mais devagar. Parecia que eu não ia mudar. Eu não queria mudar. As meninas já desfilavam com seus sutiãs, os meninos exibiam orgulhosos sua penugem debaixo do braço e eu mostrava um sorriso amarelo de descontentamento.

Casais começaram a surgir. Bilhetinhos trocados, passados de mão em mão durante as aulas. Mãos dadas no intervalo. Aquele roçar de lábios com a boca fechada que chamavam de beijo. Mas não comigo, nunca pra mim. Ou assim eu achava.

O nome dela era Laura, e no momento em que eu a vi, tudo ficou diferente. Algumas semanas se passaram até eu vê-la de novo. Conversamos; ela riu, me olhou esquisito e se despediu. Não mais a vi. Ainda sonho com ela de vez em quando, do sorriso sem-graça, do olhar desejando que eu saísse de perto; meu peito dispara quando acordo. Dá uma sensação triste de vazio; o peso de ser diferente faz com que minhas costas se curvem aos poucos, ou assim parece.

Meses se passam, muitos meses na verdade; os anos vão se passando devagar, e eu vejo as pessoas mudando, a cidade mudando, o peso da diferença nas minhas costas cada vez maior. Lido com os olhares, os insultos, as pessoas que não entendem ou não querem entender como sou.

Um dia, voltando à noite, um pastor me abordou, me jogou no chão e orou pela minha alma, enquanto mulheres vestindo sacos, ou túnicas gritavam ao seu redor. Enquanto eu me recompunha e corria, me chamavam de demônio, mandavam eu voltar pro inferno. Não é o tipo de coisa que vemos.

Eu sei que tem algo diferente com a minha cabeça, e sou feliz com isso, não entendo a necessidade dos outros de me dizerem que é feio, que é errado, que é imoral. Não entendo a necessidade dos outros de se provarem tão melhores que eu em coisas com as quais não me importo.

Pessoas diferentes são protagonistas das mesmas tragédias, incapazes de mudar, sofrem sozinhas; buscam apoio em psicólogos, psiquiatras; buscam refúgio na bebida, nas drogas, no sexo... eu nem sei como são essas coisas. Masturbação mesmo eu só fui saber exatamente como era quando já tinha meus 16 anos. E olha que não achei lá essas coisas.

E eu vejo que as tragédias aumentam cada vez mais, e cada vez mais as pessoas me urgem a deixar esse meu lado diferente, a abraçar o que é comum, o que é certo, o que todos fazem. Cortar laços com as coisas erradas.

Então, com a pequena faca de limpar carne da cozinha, eu me livro do que é diferente, procuro fazer rápido pra não sentir dor.

O baque surdo não acorda ninguém, e o último barulho de que me dou conta é de um pequeno esguichar de  sangue que sai do meu pescoço.

Se não pensar, não preciso ser diferente; se não tivesse a cabeça que tenho, seria mais fácil.

Quem sabe agora pode ser fácil...


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Banco

Sentada, ela estava a esperar.

Os olhos fixos no horizonte, naquela tarde de sol escaldante. Pequenos insetos faziam uma festa pelo ar, mosquitos oportunistas banqueteavam-se nas pernas daqueles que esperavam o ônibus.

Ela ouvia com atenção as conversas dos outros, piscando apenas pra lubrificar os olhos. Ouvia histórias felizes e tristes; de reunião e de separação. Via pessoas subindo no ônibus com destino certo, via pessoas indecisas quanto ao próprio caminho. Via pessoas perguntando sobre o itinerário para o motorista.

Quando ela ficava cansada por estar no mesmo lugar, levantava e esticava as pernas, com delicadeza. O vestido florido que ela usava balançava de leve ao vento morno. O cabelo castanho claro, preso num coque; os lábios com um batom simples, sem cor.

Não podiam dizer que era bonita, mas também não era feia. Quantos anos devia ter? Trinta? Quarenta? Não dava pra saber ao certo; mas também, não tinha ninguém pra perguntar a ela. As pessoas apenas chegavam ao ponto, esperavam um pouco e seguiam seu caminho. Alguns nos ônibus grandes; outros nuns ônibus pequeninos e barulhentos. Alguns outros ficavam por muitos minutos, impacientes, batendo os pés no chão, proferindo insultos quando o ônibus finalmente apontava no horizonte.

Os ponteiros do relógio se moviam devagar e pequenas ondas de calor desprendiam-se do asfalto. Algumas senhoras recém-chegadas secavam o suor com lenços brancos, com monogramas. Coisas que não se via há muito tempo. Trajadas de preto; certamente iam a algum enterro; não que fosse importante.

Crianças andando de bicicleta, sem respeitar a distância entre os carros. Alguns adolescentes de skate. A mulher no vestido florido voltou a se sentar no mesmo lugar. Uma linha de formigas passava por debaixo do banco, cada qual com seu pedacinho de folha nas costas.

Um homem de terno sentou-se do lado dela; ofereceu um folheto, que ela educadamente aceitou e colocou na bolsa. Havia uma bolsa; pequena, ao lado dela. O homem se levantou, começou a falar e falar e falar, cada vez mais vermelho e suado. Fala com ênfase, com autoridade, por vezes cuspia pequenas gotículas de saliva. Ela parecia constrangida diante dele, que falava sem parar; tentou colocar a mão sobre a cabeça dela, ela se desvencilhou. Outras pessoas se aproximaram dele. Era óbvio que ela estava sendo perturbada. Colocaram o homem num ônibus e ele foi embora, enquanto duas mulheres falavam com a do vestido florido.

Ela parecia bem. Voltou à sua atividade habitual de olhar no horizonte, em direção ao final da rua, de onde vêm os ônibus. As pessoas tomaram seus rumos. Umas foram pra casa, outras pro trabalho. Logo ela estava sozinha novamente..

E quando o sol começa a descer por entre os prédios atrás da minha casa, eu vejo ela se levantar e andar de forma tímida, sempre no sentido da rua.

Ela anda devagar, mas num ritmo constante. Lá no final da rua, antes da curva, tem uma casa com um jardim tomado pelo mato. Ela abre o portão, que não tem chave e segue um caminho de pedras pequenas, no meio do matagal. Lá dentro tem uma casa antiga, com uma varanda clássica, e um banco de madeira, que já passou por dias melhores. Ela se senta e continua olhando.

É então que daqueles olhos inexpressivos parece cair uma lágrima, mas percebo que não são lágrimas dela. São minhas. Ela continua sentada, inexpressiva, olhando pra algo que eu não consigo determinar o que é.

Assim ela faz todos os dias. Ou pelo menos, tem feito isso todos os dias, inclusive finais de semana, já tem uns cinco anos que percebi. Sempre achei estranho aquela moça no ponto de ônibus em frente  à minha casa, ficar a tarde inteira sem pegar ônibus nenhum, nunca.

Acho que essa moça é triste. Acho não; tenho certeza. Ela parece estar esperando sempre por algo, algo que talvez nunca vá chegar. Talvez ela tenha perdido alguém, e esteja desiludida por isso.

Ou será que está deprimida? Vi na televisão que depressão é um caso sério, e hoje em dia muita gente sofre de depressão sem saber.

Qualquer que seja o problema dela, me corta o coração cada vez que a vejo sentada naquele banco, parada, inerte, congelada no tempo. Sempre com seus vestidos floridos e cabelos em coque. As bolsas, umas maiores outras menores do lado, sempre olhando no final da rua, esperando algo que não vem, aguardando um destino ignorado.

Por vezes, tenho pesadelos em que sou essa pobre mulher, e acordo gritando. Não com pena dela. Com pena de mim mesma. E medo. Muito medo de acabar assim, esperando por algo que nunca virá; vivendo uma vida vazia enquanto espero um fim.