quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Carta

Ela parecia muito séria enquanto suas mãos caprichosas faziam o desenho de cada letra. Sabia que não podia errar; não podia vacilar. Só teria essa chance de escrever tudo o que queria.

"Sabe, invariavelmente nós chegaríamos ao fim, com tudo o que aconteceu entre nós; do começo tumultuado passando pelas brigas, discussões, vexames públicos; sua incapacidade de me entender e a minha incapacidade de permanecer a mesma.

Eu sou uma reinvenção constante, preciso disso como preciso do ar, você precisa do seu espaço, precisa de solidez.

Você diz que todos são iguais e não aguenta mais procurar, tão pouco aguenta esperar; por isso estava terminando comigo. Eu sabia que você já tinha outra; sempre soube.


Seja a diferença que procura nos outros. Antes de exigir demais, pense em doar-se mais um pouco.

É por isso que nunca demos certo, eu sempre pensei em você antes de pensar em mim, e você fez o mesmo. Sempre pensava em si mesmo em vez de pensar em mim.

Esse é um adeus sem sabor amargo, sem ressentimentos."


Ela sorriu ao terminar. Precisava de um banho. Deixou as roupas caírem pelo chão do apartamento. Um módulo de solteiro simples, sem nenhum conforto, mas que bastava, com uma janela ampla que, quando você se esticava um pouquinho pra direita, podia ver o mar ao longe. Não era o que ela tinha sonhado, mas nem todos os sonhos se realizam.


A água fria era quase um carinho pra seu corpo até então negligenciado. Ela aprendera quando criança que os banhos frios faziam bem pro organismo, mas mesmo assim se rendia aos banhos quentes. Ainda tinha a remota esperança de um apartamento com banheira, mas talvez não devesse sonhar com tanto; já que apenas o hoje interessava.

Olhou no relógio enquanto se secava; já estava anoitecendo e ela não pretendia ficar parada. Escolheu um par de brincos e pulseiras, colocou a calcinha nova, que tinha comprado e estava esperando uma ocasião pra usar. Decidiu não usar o vestido; era muito clichê. Preferiu uma boa e confiável calça jeans, bem justinha, e uma blusa confortável, que realçava seu seios.

Olhou novamente para o que havia escrito. O estilete ainda estava sujo de sangue sobre a cama, a lado do corpo inerte do namorado. Admirou sua letra, gravada nas costas dele. Aquilo sim era arte. A beleza do vermelho em contraste com o negro da pele dele e o branco dos lençóis; cada um dos inúmeros tons de vermelho que ela era capaz de distinguir. Um sorriso verdadeiro brotou em seus lábios enquanto ela caminhava e abandonava a janela.

Aqueles que testemunharam, disseram que ela não fez mais que um baque surdo quando chegou na calçada, ainda rindo. Os amigos disseram que ela havia dado tudo de si pra ele, e não restara nada pra que se quebrasse com o impacto.

A carta, entalhada na pele do namorado foi fotografada e reproduzida em vários jornais e na internet; Os poucos quadros dela que estavam à venda sumiram. Todos queriam para si um pedaço da loucura dela. Quanto a ela, queria apenas... não, talvez ela não quisesse nada. Talvez ela tenha compreendido tudo enquanto escrevia, por isso seu sorriso. E é um segredo que ela nunca irá compartilhar.


segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Transitório

Ela batia ansiosa com os dedos das mãos na madeira do banco. Ele estava atrasado, de novo; e desta vez mais de quinze minutos. Pegou o celular pra olhar casualmente as redes sociais, uma mensagem dele pedindo desculpas porque o trânsito estava um inferno. Ela riu.

Provavelmente ele nem tinha saído do escritório ainda. Vida de office-boy era dura, ela sabia; mas tinham decidido pelo namoro, não? Ele tinha que se esforçar também; o tempo em que ela estava ali, plantada, esperando por ele, podia estar fazendo a resenha de um dos livros que o chefe tinha mandado. Trabalhar na editora não estava sendo fácil, mas pagava as contas e ainda garantia um dinheiro miúdo pra épocas mais difíceis.


Mais dez minutos de espera e finalmente ele estava lá, despenteado, sem fôlego. Era engraçado de ver, e ela não conseguia evitar um sorriso infantil de reprovação. Ele trouxe flores um tanto quanto amassadas; já meio murchas, mas o importante foi a intenção, e ela o abraçou com força, deixando-o sem-graça. Ele não estava muito acostumado com demonstrações públicas de afeto.


Pegaram um na mão do outro e continuaram conversando sobre seus dias, sobre seus empregos, sobre suas famílias irritantes. Toda sexta, no final do expediente, alguns saíam pra beber; eles saiam pra conversar. Eram amigos desde quando? Desde os tempos da escola, sexto ou sétimo ano; separaram-se no ensino médio; reencontraram-se por acaso já no finalzinho da faculdade: uma amiga dela estava saindo com uma amiga dele; não durou muito, infelizmente, mas os reaproximou.


Foram semanas de conversa online, alguns tweets trocados, algumas curtidas no facebook, poucos convites pra sair até que finalmente uma brecha no horário permitiu que se encontrassem; foram ver um filme qualquer, uma daquelas comédias românticas que servem pra que os casais tenham privacidade pra trocar alguns beijos no escuro do cinema.


Ele passou a mão por trás dos ombros dela, ela inclinou o pescoço, eram apenas mais um clichê de casal entre tantos outros, o arrepio na coluna, a língua passada discretamente nos lábios pra umedecê-los, a dormência no braço depois dos minutos iniciais, a mão dela dedilhando os botões da camisa dele. Tudo parecia bom, e foi se repetindo, e repetindo, e repetindo mais e mais.


Mas nem tudo na vida deles podia ser resumido em felicidade: Ela era bastante regrada, e ele tímido até demais. Ela achava que ele era virgem, e ele realmente era. Não ficou por muito tempo. Ele achava que ela era mente aberta demais, e ela realmente era. Não demorou muito pra que ele começasse a ver o mundo com outros olhos.


O maior problema nele era a impontualidade. O maior problema dela era a inflexibilidade; e eles às vezes faziam piadas um do outro enquanto tomavam sorvete nas sextas-feiras. Nem sempre transavam, só quando ele recebia um extra no serviço. Ele fazia questão de pagar o motel, porque se sentia desconfortável em fazer no apartamento dela.


Os dias foram passando, as semanas correram, os meses praticamente se desfizeram enquanto as páginas do calendário eram jogadas fora. Ele conseguiu uma promoção, e um salário mais gordinho; ela foi chamada pra ministrar um curso sobre Literatura fantástica. Ainda não sabia se ia aceitar, ainda não tinha pensado em como contar a ele.


Pra que as coisas ficassem mais difíceis, desta vez ele chegou antes, estava esperando por ela, com um sorriso, e uma declaração.

"Eu te amo"


Ela engoliu em seco. Claro que eles já haviam trocado juras de amor, mas desta vez era diferente; ele realmente falava sério. Ela controlou o pânico dentro de si e domou a respiração


"Precisamos conversar"


Ele empalideceu, mas consentiu.


"O quê é o amor? Sejamos objetivos: temos o aumento da temperatura corporal, assim como o aumento do fluxo sanguíneo em nossas veias, o que faz com que o coração bata forte. Temos a boca seca o cérebro que se perde em fantasias possíveis e impossíveis ao lado de alguém que nos faz feliz."

"Eu te faço feliz?"
"Por conta disso sempre estivemos juntos; mesmo separados. Mas eu tenho que dizer que a gente tem que se afastar por um tempo."

E ela contou do convite; mesmo triste, ele aceitou, resignado. Ela não pertencia a ele, nunca pertenceu; por um acaso do destino eles trilharam o mesmo caminho juntos.


As sextas-feiras estavam um pouco mais vazias agora. Ela estava em outra cidade, trabalhando; ele decidiu fazer uma outra faculdade à noite. Os meses trouxeram os primeiros fios brancos dela; que ela rapidamente escondeu. Aproveitou pra mudar o castanho do cabelo pra um tom de cobre. Ela sempre quis cabelos acobreados. Pra ele o tempo trouxe um cavanhaque, e logo em seguida uma barba. Alguns quilos a mais também, e graças aos deuses a calvície não deu sinal.


Ela finalmente lançou o livro que ela tanto queria, mandou convites a todos os amigos e conhecidos. Ele não poderia ficar de fora, mas estava ocupado cuidando dos gêmeos. Pois é, ele tinha casado com uma mulher até parecida com ela, e teve a sorte de ter gêmeos.


Talvez sejamos apenas pó de estrela; esperando, procurando pelo universo alguém disposto a queimar na atmosfera conosco, na mesma sintonia...


São momentos transitórios de felicidade incandescente, sufocante, arrebatadora; do tipo que nos faz lembrar sempre e sempre e sempre, e reviver esses momentos na memória quando as coisas não vão tão bem.

E ela pensa que deveria ter dito "eu também te amo", mas é tarde demais pra isso.

domingo, 19 de agosto de 2012

Simplicidade

Pendurado sobre a janela do meu quarto, o mensageiro dos ventos canta devagar, enquanto os raios pálidos de um sol preguiçoso avançam sobre meu refúgio.

Os dias tem sido cansativos; cada vez mais trabalho a ser feito, não tenho mais tanto tempo pra me dedicar aos meus livros, como de costume; não tenho mais tempo pra dias preguiçosos de ficar enrolando na cama, rezando pra cochilar novamente.

Às vezes fica difícil de lidar com o criticismo das pessoas mais velhas que eu, adeptas de uma forma de educação mais tradicional e menos participativa; eu aprendi que o conhecimento só pode ser verdadeiramente construído em conjunto; parte do meu prazer em ensinar acontece porque sou capaz de construir a aula junto com meus alunos.

Quase sempre eu desanimo em ver que preconceitos religiosos ainda são aceitos abertamente. O fato de ser gay, ou lésbica não deveria ser mais importante do que a qualidade da aula; o fato de não ser cristão não deveria pesar nos ouvidos das pessoas; mas é apenas isso que a maior parte das pessoas enxerga; um rótulo.

Nos dias preguiçosos, é isso que eu gosto de fazer, pensar na vida, analisar o que não está caminhando direito e imaginar cenários e alternativas; coisas que eu posso fazer ou evitar, que façam diferença. Ainda que eu veja a mim mesmo como pessimista, existe uma ponta de otimismo gritante, cada vez que falo do meu trabalho.

A vida não é simples de forma nenhuma, mas agir com simplicidade se faz necessário. Existem coisas que simplesmente não somos capazes de mudar, mas não quer dizer que devemos desistir. Se uma tentativa resultar em fracasso, nada nos impede de sentar, digerir a ideia, e tentar novamente num futuro, seja ele próximo ou distante.

Agir simples, pensar simples, viver simples; imitar os pequenos raios de sol persistentes, ganhando milímetros de cada vez enquanto avançam pelas frestas da janela entre-aberta. Poder ouvir e distinguir cada nota do mensageiro dos ventos, e cada conversa das pessoas que no cercam são basicamente a mesma coisa. Alguns soam bem aos ouvidos, alguns nem tão bem; mas são parte da vida.

Às vezes é difícil, mas desanimar ou desistir não são opções; enquanto pensamos na vida como complexa, esquecemos de ver as coisas simples do nosso dia-a-dia.

Simplicidade às vezes é abrir os olhos e esquecer dos problemas, não porque eles não estão lá; mas porque eles estão lá, junto com todas as outras coisas que fazem do mundo uma experiência única.