sexta-feira, 23 de outubro de 2009

03

Há muitos anos eu não entrava nesse lugar. A entrada parece completamente diferente, os letreiros... claro, a cidade cresceu, e bastante, parece certo que as coisas da cidade também cresçam... mas as pessoas são completamente diferentes, as roupas, os olhares... é tudo tão imediatista, tão repentino...


Eu pago o táxi e entro pela porta dupla; pago a entrada e já me encaminho ao bar... acho que velhos hábitos nunca morrem, apenas ficam adormecidos ali no canto, hibernando em silêncio... a maior parte das pessoas bebe essas cervejas estranhas, pra mim todas elas têm gosto de mijo, sempre tiveram, mas nos meus tempos de adolescente era legal sentar na esquina de noite com a galera e comprar das mais baratas, no posto do outro bloco e a gente bebia e falava merda a noite toda, só pra preocupar nossos pais.


As batidas da música me alcançam no mesmo instante em que o gelo do copo toca os meus lábios... não é de todo ruim, mas ainda assim, ambos diferentes... a bebida é aceitável, a música é tolerável. Não sei como agir nessas horas. O fluxo de pessoas vai em direção à uma escada pro segundo andar, e eu sigo, de forma quase involuntária. Lasers verdes pontuam o teto, numa constelação imaginária.


Claro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-branco-escuro-claro-escuro-claro-escuro-buzina-escuro-claro-escuro-claro-escuro


Demora, mas meus olhos se acostumam com a variação luminosa. O espaço é maior do que parece, com algumas plataformas onde homens sem camisa dançam. Muitas mulheres dançando, despreocupadas, algumas se tocam, se beijam, alguns homens olham, não com desejo, como eu estou acostumado a ver. Alguns homens trocam olhares, outros, carícias. Bancos estrategicamente posicionados servem como repouso pros cansados de dançar, e como refúgio praqueles que buscam os braços do parceiro da noite.


Os corpos se movem sem ritmo, a batida parece contagiar. Uma ou outra vez eu percebo alguma letra, algum remix? Não é importante saber, não faz nenhuma diferença nesta noite, não faz diferença em noite nenhuma.


Escuro-claro-escuro-claro-escuro-globo espelhado-espelhos nas paredes


É, o meu reflexo. Os fios brancos parecem se destacar, por mais que ninguém mais perceba, não se pode mentir a idade pra nós mesmos, e olhando ao meu redor, nem de longe eu sou velho neste ambiente. Achei que seria diferente, que seria considerado um “tiozão”


Eu procuro um lugar mais agradável, onde eu possa ver tudo, onde eu não perturbe, e nem vá ser perturbado, de preferência perto do bar. Passando por trás da cabine do DJ dois lances de escada, um subindo e um descendo, grandes chances de serem outros ambientes, os quais eu ainda não quero conhecer.


A música começa a fazer efeito, primeiro você mexe os pés devagar, improvisando uma batida, o pescoço lentamente começa a se mover, e em seguida as mãos, segurando-se firmes, por vezes enfiadas nos bolsos, até que você se rende e começa a se mexer no mesmo compasso que as outras pessoas, cada uma no seu estilo, cada uma do seu jeito, um ritual coletivo, e ainda assim individualista, os olhos fechados, os lábios murmurando alguma prece estranha numa língua ininteligível.


É vibrante, contagiante, incompreensível, essa força vital que sobe da pista, o ritmo descontrolado das batidas e das pisadas, dos beijos e segredos trocados ao pé do ouvido, das mãos que procuram, dos corpos que se encontram, eu abro os olhos umas três vezes, motivado pelo barulho não-harmônico e pela impressão de proximidade, nas três vezes eu sorrio, algumas frases são trocadas, eu sorrio de novo enquanto balanço a cabeça, negativamente. Um aperto de mão, um tapinha nas costas e um agarrão na cintura, as três reações, em ordem, ao que eu respondo com uma nova negativa. Não é nada com eles, é comigo.


Incrível como nós só pensamos na vida a partir da possibilidade da perda. Três longos anos já se passaram, mas eu ainda lembro de cada detalhe, cada imagem, e a dor nunca diminui, sempre fica aquela marca indelével, você acorda, trabalha, conversa, passeia, dorme, e continua lá, do mesmo jeito, o máximo que acontece é que fingimos pra nós mesmos que superamos.


Escuro-claro-escuro-claro-escuro-lasers verdes-jogo de luzes-muda o DJ-claro-escuro-claro-escuro


A sirene toca de novo, o ritmo das músicas muda, muitas pessoas vão pra trás da cabine do DJ, em direção às escadas, e eu não tinha percebido o quão grande era o lugar, e o quanto de público ele atrai, visto que mesmo com muitas pessoas subindo, ainda passa a impressão de lotado, ou pode ser que realmente esteja lotado.


Hora de ir ao banheiro, apenas uma porta -banheiro coletivo- eu dou de ombros e vou em direção ao mictório. O cara do meu lado me dá uma olhada e passa a língua nos lábios. Sei bem o que ele quer, não é a minha. A mão dele me procura, a minha mão a interrompe, enquanto eu me dirijo pra lavar as mãos. Ecos do passado, um passado bem distante, mas não esquecido.


Eu tinha vinte e dois quando a gente se conheceu, e vinte e seis quando demos o primeiro beijo. Trinta quando resolvemos juntar as coisas e dividir um apartamento minúsculo. Com trinta e cinco o Destino achou engraçado jogar um carro contra o nosso. Setenta e cinco pontos, dois parafusos no braço, uma fratura exposta na perna, meses de fisioterapia, e uma vida de solteiro num apartamento de casal.


Tem dias em que é mais difícil lidar com a perda, tem dias que é menos difícil, mas nunca fica mais fácil.

A música que eu conhecia acabou e eu nem percebi, estava perdido demais nos meus próprios pensamentos de solidão.


Escuro-claro-escuro-claro-escuro-lasers verdes-escada - pé ante pé – subindo-escuro-claro-escuro-claro-escuro


O andar acima tem música pop, nada de remixes, as paredes não são espelhadas. A cabine do DJ é num canto, perto de janelões fechados, ar condicionado a toda. As pessoas parecem diferentes, os lasers deste andar são vermelhos, me dão a freqüente impressão de estar sob mira de alguma arma.


As luzes são mais fracas, os abraços mais apertados, os beijos mais longos e as carícias mais íntimas. O álcool também aumenta em concentração, pelo menos pra mim, e mais duas vezes eu ouço sussurros ao meu ouvido. O primeiro é encarado com surpresa, e uma recusa, o segundo conquista a minha mão na cintura, o abrir dos lábios, o contato com a língua dele, devagar, melodiosa, as coxas dele contra as minhas. Há muito tempo não tinha nada assim.


Sentamos no sofá, palavras doces são trocadas ao pé do ouvido, seguida de mordicadas de leve no queixo, no lóbulo da orelha, as mãos dele procuram os botões da minha blusa, a minha mão procura a barriga dele, pêlos aparados, nenhum tanquinho, felizmente. Parece que a febre do verão, em prol de um abdome de tanquinho ainda não alcançou a todos os lugares, felizmente. O cavanhaque dele no meu pescoço, a respiração dele eriçando os pêlos da minha nuca, mais beijos, mais mãos, menos botões.


Claro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-escuro-claro-escuro-claro-escuro-escuro-branco-escuro-claro-escuro-claro-escuro-buzina-escuro-claro-escuro-claro-escuro


Ele segura minha mão, eu sei o que ele quer, eu vou até o guarda-volumes e deixo carteira, celular, chave de casa, e guardo o canhoto que me entregam no sapato; ele ainda me espera, sorrindo –é um sorriso?- Ele me pega pela mão e me beija. É, não tem nada na boca dele. Não seria a primeira vez que tentam me passar alguma coisa durante um beijo. Ele desce o primeiro lance de escadas, eu desço atrás, ele ri –desta vez foi uma risada!- e desce o segundo, eu respiro fundo e desço junto.


Escuro-escuro-escuro-mãos-calça-peito-escuro-mão-vultos-rostos-mãos-tropeços-corpos-pés-escuro-escuro-escuro-olhos fechados-gemidos-sussurros-escuro-escuro-cheiros-toques-contato-escuro


A mão dele segura a minha e me coloca contra a parede, meus olhos já começam a se acostumar, a distinguir os vultos se entregando totalmente, uns aos outros, ninguém pertence a ninguém nessa liberação sexual, nessa confusão de mãos e corpos. As mãos dele passam pela fivela do meu cinto e abrem meu zíper, e eu sinto os lábios dele descendo pelo meu peito enquanto ele parece se ajoelhar. O casal ao lado faz o mesmo, e o homem em pé, o loiro –parece loiro, será realmente?- inclina a cabeça pra mim, pedindo um beijo, que eu de bom grado concedo. Mãos me tocam, eu sinto os lábios da minha dupla em mim, minhas mãos procuram outra pessoa, numa confusão total, onde eu estou além dos limites do meu próprio corpo, onde os limites não são importantes, e a indefinição é a única coisa que nos une.


Escuro-escuro-escuro-lábios-pênis-peito-escuro-mão-nádegas-mamilos-mãos-borracha-costas-inclinar-escuro-escuro-escuro-olhos fechados-força-empurrar-gemidos-sussurros-escuro-escuro-beijos-mordidas-reentradas-escuro-escuro


Eu suo, eu sinto o suor de outros em mim, eu sinto os quadris da minha dupla me pressionando contra a parede, as mãos dos outros sobre mim, me tocando, me explorando, e com um gemido meu, um beijo da minha dupla, a borracha é jogada no chão, ele se veste e sobe, enquanto eu continuo, sem saber os meus próprios limites.


Outras mãos, outros lábios sobre mim, em todos os lados, por todos os ângulos, eu sinto as pessoas às minhas costas, o casal do meu lado se separou, o loiro à minha frente, apoiado em algo, reclinado pra frente, me convidando pra possuí-lo, enquanto o parceiro dele, cujo rosto eu sequer vi, pede pra que eu me incline. Pele na pele, sem borracha, meu corpo involuntariamente reclama, ao mesmo tempo em que o loiro reclama da invasão, a pele, o cheiro, o suor, o contato, os movimentos, a escuridão, somos todos um aqui, sem limites do ser ou do existir.


Escuro-escuro-escuro-lábios-pênis-peito-escuro-mão-nádegas-mamilos-mãos-borracha-costas-inclinar-escuro-escuro-escuro-olhos fechados-força-empurrar-gemidos-sussurros-escuro-escuro-beijos-mordidas-reentradas-escuro-escuro-gozo


Eu termino de me vestir enquanto mãos alienígenas ainda percorrem o meu corpo, estou cansado, dolorido, sujo até, tenho essa certeza, mas nada disso é importante, nada mais importa.


Eu subo as escadas devagar, e um mundo inteiro de claridade se revela pra mim; não sei quanto tempo eu fiquei naquela sala repleta de escuridão, mas sei que eu quero ir pra casa. Eu vou ao guarda-volumes e pego o que é meu, e sigo em direção ao caixa, pago minha comanda e sinalizo pro táxi. Dou o endereço. Um olhar reprovador, mas eu já encarei tantos outros, muito piores na verdade. Dos meus pais, dos meus ‘amigos’, da minha ‘namorada’, não vai ser esse taxista que vai me intimidar.


E no banco de trás do carro, enquanto o mundo se ilumina, eu penso em tudo o que já foi tirado de mim, em todas as juras e promessas e sonhos de um dia viajar pra fora do país, ou adotar uma criança, ou mesmo sossegar um tempo no Nordeste, e como tudo isso foi arrancado de mim por um motorista voltando de uma balada, exatamente como eu faço agora.


É uma sensação de vazio tão grande, tão opressiva, mas eu já me condicionei a não chorar, eu sei que desde aquele momento, há três anos, meu destino era permanecer sozinho. Ele foi o único que entendeu e aceitou a minha condição, e estar com ele era mágico, e único, e ninguém tem culpa por isso, e ao mesmo tempo todo mundo tem culpa da minha condição. Irresponsabilidade minha, em tempos de juventude, loucuras de uma noite que a gente vem a se arrepender depois.


Eu não me arrependo mais; eu sou amargo, sou ressentido, sou hipócrita, eu sorrio quando vejo que não tem borracha. Do jeito que me tiraram o sentido da vida, eu condeno cada um deles a uma existência tão torturada quanto a minha. Sou torpe, sou vil, sou tão humano quanto qualquer um deles. Não escolhi minha condição, mas eu não recuso, nem rejeito ser como sou. E é assim, um dia depois do outro, até que uma infecção me leve.

Eu chego em casa, pago a corrida e subo, esperando por mim, dois gatos, e um coquetel, que tem sido meu fiel companheiro na imensidão desse apartamento minúsculo onde eu projetei minhas esperanças.


Esperanças como um castelo de cartas, que perdeu sua base três anos atrás, e agora, eu não ligo, tudo pode ir pra casa do caralho, pq eu sei exatamente que a doença e a morte me esperam.


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