segunda-feira, 12 de outubro de 2009

02

A torradeira apita e ejeta duas fatias de pão perfeitamente douradas, sem casca. Os ovos mexidos no canto direito do prato, as três tiras de bacon alinhadas no canto esquerdo. Guardanapo de algodão branco, impecável, cobrindo os talheres prateados. O copo de suco de laranja, apenas duas colheres pequenas de açúcar, coado e sem espuma, do jeito que ele gosta.


Eu ouço os passos dele na escada e me apresso em colocar o jornal em posição, minhas mãos no avental, um sorriso no rosto enquanto ele desce, já arrumado, o cheiro de loção pós-barba no ar. Ele pega o jornal sobre a mesa e o folheia enquanto come apressadamente. Eu separo o paletó para ele enquanto ele escova os dentes, e ele deixa "dinheiro" sobre a mesa, ao lado do prato, como se eu fosse uma garçonete qualquer, e sai, balançando as chaves do carro, mas não sem antes esperar que eu abra a porta.


Eu observo da varanda até que o carro cruze a esquina, assim como as outras esposas o fazem. Todas nós, com nossos aventais impecáveis, nossos cabelos presos e uma bela aliança que brilha ao sol que acabou de nascer, cada uma com seu orgulho pela bela casa, os belos jardins que cultivamos, sem nenhuma erva daninha. Nossos arbustos perfeitamente cortados, simétricos.


Mais meia hora exatamente até que a doméstica chegue nesta manhã de segunda-feira; usamos apenas o termo doméstica, não mais empregada, como nos tempos da minha avó. É tarefa delas lavar os banheiros, encerar os pisos, tarefas indignas de uma mulher casada. Porque nenhuma delas tem marido, pobres coitadas; a maior parte tem um amante, ou é “amigada” com alguém, longe da vida estável que o casamento proporciona. Elas chegam num ônibus verde, cada qual pra uma casa, rapidamente, pela porta dos fundos.


A lista de tarefas está pronta sobre o balcão, eu confiro mentalmente as necessidades da casa e comparo com minha lista, tudo confere, pego a cesta de vime, tão bem trançada e detalhada, uniforme entre nós que iremos ao mercado, e me dirijo à porta, parando apenas para pegar o chapéu e as luvas. Não é de bom gosto que senhoras casadas apresentem-se de qualquer maneira na frente dos outros, foi a primeira lição de minha mãe quanto à minha vida de casada.


Na soleira da porta vejo minhas vizinhas se preparando para a mesma empreitada. Um aceno de cabeça apenas por educação, pra mostrar que reconheço a existência dessas outras mulheres cuja felicidade se rivaliza à minha. Elas respondem, com um sorriso, e meus pés se movem, um após o outro ao longo da calçada, em direção aos mercados. É um lindo dia de sol, mas sem estar abafado.


Nossa pacífica vizinhança é como uma ilha de tranqüilidade, é só andar alguns blocos para que o cenário mude; já é possível ver os carros da guarda, controlando a entrada e saída. Eles cumprimentam a todos nós do mesmo modo, formal e impessoal, nada seria melhor.


Aqui as casas são menores; as pessoas, piores. Naquela casa de esquina mora Tânia e sua amante. Quão repulsivo me é o pensamento de uma mulher entregando-se a outra, uma afronta aos olhos de Deus e dos homens. Qual a lógica ou razão disso? Onde está o sagrado fim reprodutivo que Deus nos confiou? Mulheres baixas, repugnantes... deveriam ser mandadas pra longe, junto com os sem-teto, os mendigos... mas somos obrigadas a conviver com esse câncer entre nós.


No outro bloco fica uma lavanderia. Todas as esposas sabem realmente o que acontece dentro daquelas paredes; apenas homens são vistos entrando, geralmente no período da tarde e da noite; aquelas asiáticas, com seus olhos puxados e seus feitiços do oriente, seus risos miúdos e pele amarelada, macilenta, nenhuma delas sabe o prazer de se dedicar a apenas um homem, que te satisfaz em todos os aspectos. Putas, piranhas, degeneradas! Posando de trabalhadoras honestas! Uma delas acabou de sair pra pendurar a placa de “estamos abertas”. Claro que estão! Mulheres repulsivas! Envergonha-me ter que dizer que são mulheres... são fêmeas, como os animais! Ela acena com a cabeça, eu e algumas outras viramos o rosto; elas têm que saber que não são parte, e que nunca serão.


Finalmente o mercado! Mas ainda não o nosso. As primeiras lojas são pras largadas, viúvas, todas as infelizes inferiores. Suas roupas justas, maquiagem nos rostos, usando o exterior pra seduzir e disfarçar seus interiores de serpentes; criaturas falsas, enganadoras! É sempre tão repulsivo ter que andar por entre elas, como água e óleo, não nos misturamos, ficamos sempre em evidência quando confrontadas com elas, seus lábios vermelhos, olhos pintados de preto, ainda que seja de manhã, as bijuterias de plástico nas orelhas, no pescoço, os anéis de metal vagabundo...


Quase com uma pressa que não me é característica eu entro na loja, entrego o papel com as anotações ao dono, um homenzinho gordo e ensebado, quase careca, com seus quarenta e poucos anos. Ele grita pro ajudante, um mocinho com seus dezoito, ou quase isso, cabelos pretos, uma rede sobre eles, já que está mexendo com comida; ele pede a minha cesta, que eu entrego, e ele coloca rapidamente os produtos nela. Hora do "dinheiro"; eu passo meu cartão na máquina. Há muito tempo não usamos mais dinheiro de papel; a transação é consumada, e eu volto pra casa enquanto as outras esposas são atendidas.


O caminho de volta é sempre mais apressado, o sol já se levantou por completo, pequenas ondas de vapor sobem do asfalto, e nós, esposas, andamos apressadas pelas calçadas, acenando delicadamente umas para as outras com quem ainda não falamos. O trajeto é intenso, e revoltante, as largadas, as viúvas, as putas, as pervertidas, todas estão ali, olhando, uma mistura de inveja e ódio estampada nos seus olhares.


Fecho a porta de casa, afoita, deixo a cesta sobre o balcão da cozinha; a doméstica está ocupada. Rapidamente eu subo os lances de escada e me tranco na segurança do meu quarto. Abandono o chapéu e as luvas sobre a cama de casal, com os lençóis brancos, o dossel de renda... nunca me faltou nada aqui, mesmo nas noites em que meu esposo mal me toca, mas é a felicidade que eu posso querer, a respiração dele no meu pescoço, pequenos olhares de cumplicidade à hora da refeição, quem se importa com a “felicidade” que essas mulheres da rua têm?


Um a um, os botões saem de suas casas, e o vestido é abandonado no chão do quarto, o som da água gorgoleja em meus ouvidos, preenchendo a banheira, primeiro um pé, depois o outro, ajoelhando-me devagar na água quente, o cabelo preso em um coque rapidamente se desfaz, caindo pelas costas, grudando na pele.


Eu estico as pernas, olho pra água, meus seios não são mais tão bonitos como quando me casei, a pele continua pálida e suave, mas sinto como se alguma chama tivesse se apagado. De forma inconsciente, minha mão desce até a minha cintura, e eu percebo que a única coisa que me envolve desta forma é a minha roupa. Há muito meu esposo não me toca desta forma. Minhas coxas continuam torneadas, e entre minhas pernas, continuo a mesma, com quase tanta experiência como quando ainda era uma virgem.


As mãos se movem mais uma vez. A porta está trancada, ninguém precisa saber, ninguém vai me condenar pelo meu prazer solitário, desde que nenhum som escape deste cômodo; é meu maior segredo. Aqui eu sou Tânia, se contorcendo de prazer enquanto as mãos de sua amante exploram seu corpo, sou cada uma daquelas putas da lavanderia, com línguas explorando cada cavidade, me colocando em poses vergonhosas pra cada um de meus machos, e o dono da venda, e seu ajudante, os dois me tomando por suas, ao mesmo tempo, segurando-me pelas ancas, puxando meus cabelos, mordendo meus seios até deixarem marcas, e tudo isso aos olhos do meu esposo.


Mas ninguém precisa saber, e quando eu abrir o ralo, essas fantasias proibidas também irão escorrer, até o próximo banho.

2 comentários:

Sam Silva disse...

Adoro seus contos, Tarso. Adoro mesmo!

Engracado que vejo essa mulher dizendo "Quando eu era oca..." rs

Lenonfa disse...

Ficou muito bom! Muito mesmo!